
A Cura
Rafael. Curado por deus. Talvez amaldiçoado fosse o termo certo: câncer terminal. Já estava por todo o corpo. Nenhum tratamento funcionou. E ele tentou de tudo: do clássico ao alternativo, e nada. Os médicos não souberam dizer qual a causa de tantas falhas. “Seu corpo não aguentou”. “Você já estava muito fraco”. “Deveria ter procurado tratamento antes”. “Pode ter sido o estresse, a falta de apoio”. E as desculpas seguiam em frente, enquanto ele continuava para trás, em uma cadeira de rodas e respirando com o auxílio de tanques de oxigênio.
Ele não queria morrer. Não queria morrer de maneira alguma, principalmente num hospital como um inválido. Ele pegaria sua cadeira de rodas e seguiria em frente até onde desse. Ainda tinha alguns dias. Deveria haver ainda alguma alternativa, alguma lenda, alguma coisa.
EU NÃO VOU MORRER!
Ele foi à biblioteca. Deveria ter alguma coisa. Ele passou pelas estantes, pegando todos os livros ao seu alcance. Algum deveria ter alguma coisa. Ele folheou livro por livro, até que um deles chamou sua atenção. A capa estava terrivelmente gasta, o livro parecia não ser aberto há décadas, e suas páginas estavam quase apagadas. Mas algo dentro dele dizia que aquele era o livro certo. Um capítulo estava intacto. Contava sobre o Grande Pai, que dava o presente da imortalidade àqueles que fossem até ele com vontade de viver. Havia menção a uma clareira num bosque, há alguns quilômetros dali, com um sino e um pequeno santuário. Na próxima página, um desenho do sino, com três olhos desenhados em um dos lados, formando um triângulo.
Sem nada a perder, Rafael chamou um táxi. O livro não tinha registro na biblioteca, então ele o levou consigo. Foi uma viagem relativamente curta, e ele não fazia ideia de como entrar na floresta com a cadeira de rodas, então ele simplesmente a deixou na entrada e usou suas fracas pernas. Achou um galho no chão que serviu perfeitamente como uma bengala. Respirou fundo e entrou no bosque.
Rafael perdeu completamente a noção do tempo. Não seria possível dizer se ele andou por algumas horas ou alguns dias. Era como se ele não estivesse mais no mesmo universo no qual começou sua jornada pela vida. Depois de algum tempo perdido na paisagem, e com suas pernas falhando pela milésima vez, ele caiu. Ao se levantar, estava no bosque. No centro, um pequeno monolito com um sino em cima. O sino tinha três olhos formando um triângulo em um dos lados. Mais a frente, um pequeno santuário meio destruído. Com suas forças já ao fim, ele levantou-se, talvez pela última vez, e foi até o sino. Tocou-o três vezes. Desmaiou.
Rafael acordou assustado. Ao lado dele estava um homem. Parecia um padre, mas as roupas e símbolos eram diferentes. Ele vestia um robe verde-musgo, e usava um colar, com três contas, formando um triângulo. Ao olhar mais de perto, percebeu que as contas eram olhos, e em cada uma delas havia três chifres. Um arrepio percorreu sua espinha.
-O que você veio buscar aqui, filho? – O padre perguntou. Sua voz era suave, como a brisa de uma praia deserta, mas forte, como se uma tempestade se aproximasse.
-Eu não quero morrer… – sua voz, em contraste, era fraca, e já quase sem vida.
-Meu filho, ninguém quer.
-Mas… eu não importo… com o preço… eu não quero… morrer…
-Você faria qualquer coisa?
-Qualquer… coisa… eu só…
-“Não quero morrer”. Certo. Levante-se.
Com dificuldade, Rafael levantou. Apoiou-se no pequeno monolito do sino. O padre tirou de dentro do seu robe um pacotinho de tecido.
-Fique com isso. Pode abrir, se quiser. Mas não o jogue fora. Não o deixe longe de si por motivo algum.
Dizendo isso, o padre olhou dentro dos olhos de Rafael, e tocou sua testa. Rafael sentiu vertigem e quase caiu. Seu mundo girou no sentido contrário por alguns momentos. Quando o equilíbrio voltou a si, ele abriu os olhos. Ele estava sozinho na entrada do bosque. Sua cadeira estava ao seu lado, com o tanque extra de oxigênio no assento. Por um momento ele acreditou ter sido tudo um sonho. Uma alucinação. Mas ao se levantar, ele sentiu o tecido do pacotinho roçando-lhe a pele, por dentro da roupa. Não havia sido um sonho. Era realidade. Tudo aquilo era real.
Ele sentou-se na cadeira. Ajeitou o tanque de oxigênio. Colocou o pequeno tubo em seu nariz. Surpreso, ele percebeu que sua respiração já estava melhor. Bem melhor. Talvez… talvez nem precisasse do oxigênio extra! Receoso, tirou o tubo do nariz e puxou o ar, com força. Engasgou a primeira vez, e tossiu até quase perder a consciência. Puxou novamente o ar. Dessa vez, conseguiu respirar como uma pessoa saudável. O ar lhe encheu os pulmões. Aquele ar límpido do pequeno bosque. Havia, porém, um leve cheiro pútrido no ar. “Talvez algum animal morto… alguém que morreu no meu lugar, talvez?” Ele logo espantou o pensamento. Era bom estar vivo. Custe o que custar.
Ele chamou um táxi. Queria voltar para casa! Queria abraçar sua família! Queria dizer a todos que estava vivo, e que a vida poderia ser maravilhosa!
Ele chegou em casa. Sua família estava lá, amparando sua esposa, em prantos. Ela seria viúva tão jovem. Diana estava no hospital quando disseram que ele tinha alguns de vida, e não havia mais nada que o hospital pudesse oferecer. Eles brigaram. Diana estava cansada. Foram anos difíceis lutando contra a doença, que ia e voltava. Ela queria que Rafael aceitasse. Mas ele nunca aceitou. Ele não queria morrer de jeito nenhum! Ele nunca aceitaria!
Quando viu Diana em prantos no sofá, ele se sentiu mau. Ele percebeu, pela primeira vez, que Diana não chorava só por ele, mas também por ela. Ninguém o viu quando ele abriu a porta, nem quando a fechou. Ele se levantou da cadeira de rodas, e foi andando pesada e vagarosamente até o grupo de pessoas ali. Devagar, as pessoas foram percebendo sua presença ali, e voltando os olhos para ele. Estava pálido e cansado, mas andava e respirava sozinho. Ele ajoelhou-se em frente a Diana, e pegou suas mãos.
-Eu disse que não morreria! Eu estou de volta, meu amor. Eu estou de volta para você. Pra sempre!
Os dias foram passando, e a vida aos poucos voltando ao normal. Diana ainda estava receosa da súbita melhora do marido, mas ele dizia que estava bem, apesar de uma ou outra feridinha ainda não cicatrizadas. “O corpo demora para se recuperar de algo tão forte quanto uma quase morte” pensava ela. Se Rafael não desistira, ela não tinha esse direito. Mas as feridas a preocupavam. Eram onde ficavam as agulhas do soro e todos os outros líquidos que o mantinham mais ou menos vivos no hospital. Já não eram mais para estar lá. “O corpo demora” repetia ela., enquanto ele dizia nunca ter se sentido melhor.
Por dias, Rafael não largou o pacotinho. Por semanas ele tomou banho com ele, comeu com ele, saiu com os amigos com ele. Rafael chegou a abrir o pacote. Havia três ossos ali. Ossos pequenos, como falanges. Ele imediatamente fechou o pacotinho e não pensou no assunto; continuou a usá-lo com um cordão em volta do pescoço. Logo menos ele poderia voltar a trabalhar e ter uma vida realmente normal. Ele até mesmo entrou em contato com seu antigo chefe, que concordou em dar-lhe uma vaga no antigo emprego. Começaria na semana seguinte. Estava ansioso. Estava feliz. Estava novamente apaixonado por sua vida. E depois de semanas desde que chegara em casa, Diana parecia apaixonada por ele novamente.
Naquela noite, Diana pedira que ele tirasse o pacotinho de seu pescoço, para que pudessem ter uma noite a sós. Ele até questionou o porquê, mas tirou-o mesmo assim. Ele não estava pensando com sua cabeça naquela noite. No dia seguinte voltaria a trabalhar, Diana estava com um humor magnífico então… o que importava? Colocaria o pacotinho novamente, assim que tudo acabasse. Ou pelo menos, foi o que ele pensou. Após uma noite agitada, Rafael dormiu como não dormia a muito tempo, e acordou atrasado para o trabalho. Levantou-se correndo, se trocou e saiu. Nem percebeu que o pacotinho ficara em seu criado-mudo durante toda a noite. E quando chegou em casa depois do trabalho, Rafael também não percebera sua falta.
Começou com algumas espinhas inocentes aqui e ali. Ele assumiu que seu corpo estivesse passando por alguma mudança hormonal, causada pela súbita melhora, então não deu atenção. Até que elas continuaram crescendo, e se tornaram pústulas por todo o seu corpo. Diana estava novamente preocupada, e seu próprio humor estava cada vez pior. Mas ele não se deixou levar. Comprou pomadas e sabonetes específicos. Ia vencer isso da mesma forma como vencera o câncer. Mas as pústulas foram só o começo. Elas, apesar da aparência ruim e do mal cheiro, não estavam em seu rosto, então eram fáceis de esconder. Mas o que Rafael poderia responder ao seu chefe quando ele perguntava o que era aquele crescimento estranho logo atrás do seu ombro? Quando ele o cutucava, e não havia sensibilidade alguma? Há certas coisas que não se pode esconder.
Após o estranho crescimento atrás do ombro esquerdo, começou a surgir um em seu pescoço, ao lado direito. Se estivesse frio, um cachecol bastaria. Mas como esconder um grande calombo no pescoço no meio do verão? Foi neste dia que Diana comentou das marcas das agulhas. “Já faz meses Rafael! Elas deveriam ter sumido!” sim, deveriam. Mas estavam cada vez mais roxas e purulentas. O roxo já há muito começava a tomar um tom mais escuro… um tom necrosado.
Com o passar do tempo, os crescimentos foram aumentando, e começou a surgir um terceiro, acima de sua orelha esquerda; e uma grande pústula no meio de sua testa. O tom roxo-necrosado foi-se espalhando por seus braços, até chegar quase às pontas dos dedos. Suas unhas tinham um tom de verde nauseante, e cada vez que Rafael tomava banho, grandes pedaços de pele simplesmente descolavam e caíam. Ele estava ficando bravo e assustado. Nenhum de seus amigos falavam mais com ele, tanto pela aparência quanto pelo cheiro. Uma criança na rua o chamou de “zumbi”. Após este dia Rafael se prendeu em casa e se recusou a sair. Dentro de dois ou três dias, saíram chifres dos crescimentos. Três pequenos chifres.
Apesar de tudo, Rafael não sentia dor. Muito pelo contrário, Rafael se sentia muito bem. Não havia dor, não havia mal-estar, não havia tonturas, falta de ar… com exceção a sua aparência e cheiro, Rafael nunca se sentira melhor. E Diana… bem, Diana estava tão apática e aérea com tudo o que acontecia, que ela já não mais pensava, já não mais via.
Houve um dia, porém, que Diana percebeu um pequeno pacote de tecido no criado-mudo de seu marido. Parecia estar lá a meses, intocado; havia uma grossa camada de pó sobre ele. Curiosa, Diana pegou o pacotinho e abriu-o. O que viu ali dentro a acordou de seu transe. Um grito profundo e agudo saiu de sua garganta e ocupou toda a casa. Ali dentro, onde antes havia apenas alguns pequenos ossos, agora havia uma pequena criatura, como que um feto, de uma cor amarelo-esverdeada. Diana soltou o pacotinho, que caiu no chão, acordando a pequena criatura, que por sua vez começou a chorar um choro sofrido e baixo, como um sussurro.
Rafael subiu correndo até o quarto, assim que ouviu o grito. Ao abrir a porta de seu quarto, ele viu sua mulher, assustada. Com os olhos acordados pela primeira vez em meses. Ali estava ela, olhando para o que um dia fora seu amado marido. Agora, no lugar dele, havia um monte de pus humanoide, com chifres e um olho na testa. Enquanto ele perguntava o que acontecera, ela podia ver larvas se arrastando por seus ferimentos que nunca fecharam. Vermes saindo de seu nariz e entrando em sua boa. A pele era algo flácido e desconexo. E sua cor… o que um dia fora Rafael, tinha uma cor verde nauseante, a cor de alguém que morreu há meses, mas continuou entre os vivos.
Num surto de medo e repulsa, Diana pulou a janela.
Rafael não percebeu o pacotinho jogado no chão até quase pisar nele. Pegou-o o do chão. Olhou pela janela, para sua esposa. Ela estava lá. A cabeça girada num ângulo impossível. Ela se fora. Ele caiu no chão. Com o rosto entre os braços, ele chorou.
Rafael demorou a perceber que o que havia dentro do pacote não eram mais alguns ossos, e sim a pequena criatura, que voltara a adormecer. Ele não assustou tanto quanto Diana. Ele apenas encarou a criatura por horas. Até que uma ideia lhe veio em mente. Se o padre na clareira fez com que tudo isso acontecesse, talvez pelo pagamento certo ele poderia desfazer. Certificando-se de que ninguém observava, ele pegou o corpo de Diana e trouxe novamente para casa. Colocou-a de forma confortável na cama, como se estivesse dormindo. Não poderia sair durante o dia, ele sabia disso. Teria que esperar.
A tarde e a noite passaram devagar. Não havia nada que lhe prendesse a atenção por mais de quinze minutos, e a respiração da pequena criatura o incomodava. Finalmente, ele viu a madrugada chegando. Então, ele saiu. Andou a passos rápidos pela cidade, precisava estar na estrada antes do amanhecer. Quando percebeu que não se cansava, ele começou a correr. Ficou assustado quantos pequenos vermes e larvas caiam no caminho. Mas ficou surpreso ao perceber que não sentia nojo. Na verdade, sentia uma certa afinidade. Isto lhe causou calafrios.
Rafael continuou a correr até quase o nascer do sol. Já estava na estrada há algum tempo, mas estava com dificuldade para encontrar a entrada para o bosque. Após algumas horas procurando, ele percebeu que todos os vermes e larvas e caiam dele, seguiam para uma direção. Então ele seguiu os vermes. O caminho da entrada do bosque até a clareira pareceu infinitamente mais difícil dessa vez. Havia muito mais pedras, e o chão estava escorregadio. Galhos batiam constantemente em seu rosto, arranhando-o. E de cada arranhado saía uma grande gota de pus. Algumas pessoas que faziam trilha naquele dia no bosque, disseram haver um terrível cheiro de podridão que se espalhava por toda a floresta.
Quando finalmente encontrou a clareira, o sol já estava baixo. O pequeno monolito com o sino ainda estava lá, porém se encontrava em pedaços. Ele pegou o sino do chão. Tocou-o três vezes. Na terceira vez, o sino caiu de volta ao chão, levando consigo um de seus dedos. Para sua surpresa, os vermes e larvas em seu corpo se juntaram na ferida no dedo decepado, e ali começaram a formar um novo dedo.
Enquanto Rafael entretinha-se com a formação de seu novo dedo, alguém saiu de dentre as árvores. A primeira vista, Rafael achou que era o mesmo padre que o atendera na primeira vez, meses atrás. Mas após alguns segundos olhando para ele, Rafael percebeu as fístulas em seu rosto. As protuberâncias que saiam de seus ombros e costas. O arco de intestino sendo arrastado no chão, por baixo das vestes.
-Vejo que está de volta, meu filho – disse o padre, enquanto uma larva atravessava de sua boca para seu ouvido.
-O que aconteceu comigo?! Eu fui transformado num monstro! E o que é essa… essa coisa crescendo aqui dentro? – gritou Rafael, enquanto jogava o pacote de tecido na direção do padre.
-Bem… – respondeu ele – parece que você não ficou com isso o tempo todo… Deixe-me explicar. É um ciclo. Tudo nasce, cresce, morre. Quando algo morre, dá lugar para outro nascer. Quando um morre, ele se torna os nutrientes para o próximo. Existe um equilíbrio. Existe uma ordem. E ela só pode ser quebrada até certo ponto! Veja só você! Seria tão fácil se tivesse seguido as regras! Se tivesse mantido meu dedo com você o tempo todo! – Então o padre começou a rir alucinadamente, enquanto mostrava a mão, com o dedo decepado. – Agora, como você deveria ter ido, algo cresce em seu lugar! Uma pequena criatura, como esta que está crescendo. E ela é tão magnífica quanto você agora é! Incansável! Nunca sente dor! Nunca sente fome!
-Não! NÃO! Não era isso que eu queria! Eu queria viver, mas… mas não dessa forma horrenda! De que adianta viver se for para viver sozinho e sem meus amigos! Minha esposa se foi porque ela não aguentava mais me ver assim! Esse circo ambulante de vermes e chifres! Me transforme ao normal ou… me mate.
O padre agora ria ainda mais! Um sorriso de orelha a orelha, literalmente, com dentes pontudos e vermes caindodos buracos em seu rosto!
-Oh, mas você não disse que não queria morrer? Que queria viver para sempre? Como eu posso matar algo que já está morto? Você, meu filho, vai viver para sempre! Para sempre nesta forma perfeita, que não sente dor, não se cansa, não sente fome, não sente sede! Você nunca ficará doente! Você nunca mais perderá tempo com sonhos inúteis! Você pode fazer o que quiser, querido filho. Nada pode machucar-lhe agora!
Enquanto gargalhava freneticamente, o padre foi-se novamente por entre as árvores. Dessa vez, Rafael pode perceber a trilha de plantas mortas que o padre deixou por onde andou. Mas não havia só isso… ele pode ver, apenas por um momento, o quanto aquela faixa de terra ainda fervia com vida. Vermes, larvas, bactérias, insetos, fungos… estavam todos vivos.
Rafael deixou-se cair ao chão. Ali ele refletiu sobre o que ouvira. Ele não poderia voltar ao normal. Ele não poderia morrer. O que poderia lhe restar agora? Desolado, ele voltou para sua casa, ignorando os eventuais olhares de vigias noturnos e jovens na rua. No quarto, o corpo de sua esposa ainda jazia na cama, frio. Ele deitou-se ao seu lado. Não poderia voltar ao normal. Não poderia morrer. Pela primeira vez em sua vida, ele desejou a morte, mas ela fugiu de seu encontro.