
Almas
O museu estava deserto, a não ser pelos passos ritmados dos guardas que patrulhavam os longos corredores. Haviam muitos corredores, e nem de longe uma quantidade equivalente de guardas. As obras eram protegidas de diversas formas, e atualmente a maioria delas era eletrônica. Os guardas eram, se mais nada, mera formalidade.
Ela não se importava em tomar cuidado em não ser vista. Sabia que não seria, mesmo que quisesse. E, verdade seja dita, houveram diversas vezes em que ela quis.
Mas não era assim que as coisas funcionavam, infelizmente.
Caminhou com os pés descalços pelo corredor, pensando o que diriam as pessoas se a vissem daquela forma. O que diriam de seus pés descalços.
“Bem, seria seguramente uma surpresa.” – Pensou, sorrindo consigo mesma.
Chegou ao final do corredor e encarou a Vitória de Samotrácia, sempre imponente em sua eterna pose de combate. A boa e velha Nice, sempre atenta.
Já fazia algum tempo desde que havia visto Nice pela última vez, e ela sequer era capaz de se lembrar bem o motivo. Quando de vive perambulando pelo mesmo lugar por muito tempo, as memórias se misturam e os acontecimentos rotineiros são todos como uma grande névoa.
A verdade é que não gostava de pensar em Nice como a Vitória de Samotrácia. Era a cabeça. A estátua havia sido inteira recuperada, exceto pela cabeça, o que era uma infelicidade muito maior do que sofrera Vênus, ao menos a esta última apenas lhe faltavam os braços.
Era quase uma barbaridade, quando ela parava para pensar sobre o assunto. A estatua representava, se mais nada, meia Nice, pois como poderiam as pessoas saberem sobre toda sua bravura e glória sem olha-la nos olhos? Mesmo que os únicos olhos de que pudesse dispor fossem simplórios e feitos de pedra.
Talvez aquela fosse a razão que impedia Nice de circular muito por lá. Devia ser doloroso encarar uma de suas melhores representações sem a parte mais importante.
– Você é linda. – Disse docemente para Nice. Não sabia se ela poderia escutá-la, mas disse de qualquer forma. – Não olhar em seus olhos é uma perda para o mundo. – Acrescentou. Gentileza nunca era demais.
Seguiu sua caminhada rotineira, descendo as escadas à frente da Vitória de Samotrácia. Cruzou com um guarda antes de chegar ao final da escadaria. Ele não percebeu qualquer sinal de sua presença, e ela não se deu ao trabalho de se fazer notar.
As pessoas viam o que queriam ver.
Durante o dia, ela chegava a ser intensamente fotografada. Turistas ávidos apontavam suas câmeras diretamente para ela, completamente desavisados de que viam através dela. Através do que ela era.
Nos primeiros anos, a atenção era muito bem-vinda. Lembrava-se de pensar que não importava que não a estavam vendo realmente. Ela ainda estaria registrada em todas aquelas fotos, em todas aquelas lembranças. E lembrava-se de que essa satisfação era reflexo de todo o tempo em que passara escondendo-se em lugares escuros, cercada por pessoas ruins. Em algum momento ela esquecera de como se parecia a luz do sol.
Mas aqueles dias haviam acabado, e com eles, a escuridão e a solidão.
Com os anos, a emoção de ser notada tornou-se raiva por saber que não a viam. Não realmente. Mas isso também passou. E com a aceitação, veio o equilíbrio.
Haviam muitos outros ali, como ela. Alguns mais reservados, outros mais sociáveis. Uns mais novos do que ela, outros bem mais velhos. Haviam aqueles que ainda não haviam superado a fase da desilusão, que se revoltavam com todos aqueles que passam por eles sem vê-los, que os fotografavam sem enxerga-los. E outros ainda que apenas não se incomodavam com mais nada.
Aquele ainda não era seu estágio, mas essa fase viria, ela tinha certeza, e não tinha nenhuma pressa de chegar até ela. Recentemente chegara à conclusão de que gostava de sentir, de lembrar-se de como era sentir admiração, tristeza e até pena.
Era essa a motivação que a levava a fazer suas caminhadas noturnas, a encarar cada obra e a procurar por aqueles amigos que ela sabia serem mais reclusos, mais escondidos. Mais tristes.
Nem todos tinham a sorte de serem notados, mesmo que indiretamente. Haviam aqueles que se escondiam em corredores muito distantes e em andares menos movimentados. Aquilo podia deixa-los bem amargurados.
Compaixão. Aquela era outra coisa que gostava de sentir.
Gostava de ajudar seus colegas a passarem pela fase mais escura. Ela sabia que tudo melhoraria, e gostava de dedicar-se a mostrar isso a outros.
Aquela era uma noite especialmente parada. Não era sempre que todos resolviam recolherem-se ao mesmo tempo, mas acontecia de tempos em tempos.
Atingiu o corredor onde encontrou Apolo, um dos poucos de seu tipo que tinha a sorte de estar intacto. Era alto e imponente, mesmo apoiado em seu eterno tronco de árvore, e ela não pode deixar de pensar que Nice seria até mais imponente do que David, não fossem as circunstâncias.
Quem contemplasse a face pensativa de Apolo jamais pensaria que ele gostava de cantar. Não era sempre, mas era sempre uma agradável surpresa adentrar o corredor que ele enchia com canções antigas.
Canções que apenas eles, os habitantes noturnos, tinham a sorte de escutar. A vida que aqueles corredores carregavam à noite era mais intensa do que o movimento de um milhão de turistas, e aquele pensamento a fazia sorrir.
Era um segredo que ela gostava de saber. Adorava segredos, e sabia guarda-los bem, mesmo quando ainda possuía um corpo de carne e osso. Algumas coisas nunca mudavam.
Não interrompeu a canção de Apolo, era linda. E como sempre, lhe faltavam palavras para descrever todos os sentimentos que aquela música e aquela voz lhe traziam. Quando parava para pensar sobre o assunto, ninguém imaginaria que talvez toda a reflexão eternizada na face de Apolo refletisse a próxima música que ele pretendia cantar.
Aquele era outro segredo.
E mais uma vez, ela sorriu.
Apolo terminou a música e acenou para ela.
– O teu é sempre o mais belo sorriso. – Disse ele.
– E tua sempre a mais bela música. – Respondeu ela.
Ele nada disse. Aceitou o elogio com um sorriso.
E ela seguiu seu caminho, sabendo que sua noite havia sido mais enriquecida por aquela música.
Aquele era o propósito do museu, afinal de contas, expandir os horizontes, descobrir novas obras, espantar-se com as antiguidades, redescobrir a história e, acima de tudo, enriquecer-se. Fazer-se mais rico aproveitando todo o conhecimento e cultura ao seu redor.
Haviam poucos lugares no mundo ricos como aquele, e ela tinha a sorte de poder revisitá-lo todas as noites, em paz.
Decidiu encerrar seu passeio por aquela noite mais cedo, depois de visitar alguns bons amigos na ala Egípcia. Refez seus passos pelos corredores, cumprimentou aqueles que encontrou pelo caminho e deu boa noite a Nice quando passou por ela.
Retornou à sua sala, não sem antes admirar propriamente a grandiosidade do Casamento em Caná. Aquela pintura era magnânima em seus quase dez metros de comprimento. Ocupava um lugar de destaque, com uma parede inteira tomada para si, e não para menos.
Em todos os seus anos no museu, o Casamento nunca deixou de surpreende-la, apesar de poder contempla-lo todos os dias. Sempre descobria um novo detalhe, uma pincelada que não havia notado, um padrão um pouco diferente dos outros.
– Fascinante. – Murmurou consigo.
Aquela era a beleza da arte, a surpresa. E o eterno redescobrir.
Respirando fundo, ela deu as costas ao Casamento e dirigiu-se para os seus aposentos. Eram aposentos inusitados, do ponto de vista do plano físico. Quando pensamos em aposentos, pensamos em quartos e salas, e o seu não era nada parecido com isso.
À bem da verdade, todos ali tinham aposentos parecidos com o dela, resguardadas as devidas proporções. Mas à parte do aspecto exterior inusitados, eram todos como casas, alguns, inclusive, abrigavam bem mais de um inquilino.
Eram apenas uns poucos que tinham aposentos considerados tradicionais, como era o caso de Napoleão Terceiro, que tinha o luxo de literalmente viver em sua própria casa. Uma parte bastante significativa do Museu era reservada a ele.
Mas aquilo não era um problema, Napoleão Terceiro era bem mais fácil de conviver do que se podia imaginar, e adorava companhia para preencher todas as suas imensas salas. Deus sabe o quanto todos se divertiam quando ele os convidava para suas pequenas celebrações, sendo “pequenas” o eufemismo do milênio.
Acomodou-se em seus aposentos, não pronta para dormir, mas para descansar. Dormir não era exatamente necessário na ausência de um corpo físico, e ela sempre tinha muito em que pensar, de qualquer forma. Tinha muitos segredos para guardar.
No dia seguinte, o museu abriria normalmente, e ela sabia que deveria esperar os turistas animados, as câmeras empilhadas e o burburinho característico de um dia normal no Louvre.
E como em todos os outros dias, ela estaria lá.
Sorrindo.
Sorrindo para todos aqueles que a fotografavam sem realmente vê-la. Que olhavam para ela ao mesmo tempo que olhavam através dela.
Mas estaria sorrindo. Guardando todos os segredos que todas aquelas pessoas jamais conheceriam.
Sabe, esse talvez seja um dos melhores textos seus. Mais direto. Mais simples. Mais belo.