
Giff
Giff atravessou a taverna, sob o pretexto de chegar até o bar e pedir uma cerveja, enquanto discretamente media com os olhos cada um ali. Não era difícil encontrar uma mesa vazia, mas o homem tomou seu tempo escolhendo com cuidado o lugar em que iria sentar.
O lugar não era exatamente bem frequentado. Mesmo para a região pobre da cidade, esse não era um estabelecimento de qualidade. O cheiro de álcool e urina preenchia espaço que, apesar de pequeno, parecia vasto dado o escasso número de clientes.
Finalmente ele escolheu uma mesa no canto menos ocupado. Não havia exatamente um excesso de rostos amigáveis; muitos exibiam cicatrizes e, assim como Giff, a maioria tinha pelo menos uma arma visível. Todos exibiam uma carranca.
A exceção era uma jovem atraente que tomava uma cerveja em uma mesa no centro do salão. Outros clientes a lançavam olhares desejosos, alguns discretos, outros nem tanto.
Giff finalmente escolheu uma mesa no canto do salão com as costas para a parede, a uma certa distância dos outros. Ele analisou todos os presentes mais uma vez, imaginando se algum deles seria Foehl.
A moça se levantou de sua mesa e sentou na cadeira à sua frente. Seus olhos negros o fitavam de lado e sua boca sorria apenas com um canto. Os olhares a seguiram e alguns deles agora se dirigiam a ele, de forma pouco amistosa. Mesmo tendo seu machado nas costas, Giff achou melhor evitar problemas.
“Eu estou esperando alguém,” disse ele sem ao menos olhar para ela.
“Deve ser alguém importante,” respondeu ela, seu sorriso sem sequer vacilar, “A guarda do duque talvez?”
Giff conseguiu não engasgar com sua bebida. Por um instante os dois se olharam em silêncio.
“Foehl?” ele perguntou
“Você parece surpreso. Não gostou da minha escolha de imagem?” Ela se inclinou para a frente, um dedo se enrolando em seu cabelo.
Ela riu da falta de reação de Giff, mas em seguida se endireitou na cadeira.
“De qualquer forma, está feito.” O sorriso de Foehl diminuiu, mas ainda estava lá.
“Está feito? Você me manda aquele bilhete e espera que eu me contente com ‘está feito?’”
“O que mais você quer?”
“Você pode primeiro me explicar por que – e do que – eu estou tendo que me esconder? E por que você escolheu essa pocilga como ponto de encontro? E por que essa aparência?”
“Que eu saiba essa pocilga já foi o seu lugar favorito, muito tempo atrás.”
Ele torceu o nariz, se perguntando, não pela primeira vez, como aquela pessoa podia saber tantos detalhes sobre ele.
“E, bem, seria bem inconveniente para mim usar a mesma aparência para ir no mesmo bar encontrar um homem que agora está sendo caçado pelos elfos.”
Giff sentiu sua cara ficar branca.
“Os elfos? Você garantiu que só usaria meu rosto pra ela! O que mais eu não sei sobre o que aconteceu?”
“Você quer a versão curta ou a versão longa?”
“Eu não tenho tempo pras suas brincadeiras!”
“Não se preocupe, ainda temos bastante tempo.”
Giff parou e refletiu por um instante
“A versão longa então.”
Foehl saiu da caserna em direção às escadas. Ele subiu os degraus de pedra com naturalidade, como se ele realmente pertencesse àquele lugar. Suas passadas metálicas alertaram o outro guarda, que o olhou com irritação quando ele chegou ao topo da escada.
“Finalmente! Já estava achando que eu ia ter que fazer o turno sozinho.”
“Desculpe, eu tive um problema. Você pode querer evitar usar as latrinas quando voltar”
“O que você- Quer saber? Nem me fala.”
“Ei, o que são aqueles vultos?”
O guarda olhou para onde Foehl apontava, quase no limite da luz das tochas.
“Não consigo ver nada de-”
Ele foi interrompido por uma faca rasgando sua garganta. Foehl cobriu sua boca até o outro parar de engasgar em sangue, e em seguida jogou o corpo do lado de fora da muralha. Foehl caminhou pela muralha até chegar no ponto combinado. Seu rosto mudou de formato, adquirindo um queixo mais longo e um nariz mais comprido. Rugas e bigodes grisalhos surgiram como se ele tivesse envelhecido décadas em alguns segundos. Seu rosto era idêntico ao de Giff. Para alguém do lado de fora seria difícil ver a mudança.
De um bolso do que parecia ser sua armadura ele tirou uma pequena caixa de ervas secas e um papel e enrolou um cigarro. Levando-o à boca, ele estalou seus dedos e pequenas chamas voaram de sua mão, acendendo a ponta do fumo após algumas tentativas. Ele teve tempo de dar algumas longas tragadas até que duas figuras emergiram das sombras no chão abaixo.
Olhando de um lado para o outro ele fez um sinal e uma das figuras jogou uma corda com um gancho, que se prendeu numa quina. As duas figuras escalaram em silêncio. A luz das tochas não os tornava mais reconhecíveis; armaduras de couro escuro e um capuz preto e uma máscara de tecido negro impediam qualquer iluminação direta de atingir a pele. A única característica que os distinguia eram as armas que cada um carregava nas costas: um tinha duas espadas longas e o outro um arco composto e uma aljava.
“Qual o problema? Tudo parece ter corrido como planejado até aí.” interrompeu Giff.
“Você pediu a versão longa.”
“Que tal você só me contar porque os elfos estão me perseguindo?”
“Você quer a versão curta então?”
“Desde que você não pule nenhum detalhe importante.”
“Então deixa eu continuar a versão longa.”
“Você confirmou a presença do alvo?” perguntou a figura com o arco, em uma voz feminina.
“Ah, ela está aqui, sim,” respondeu Foehl. “Jantou com o duque e tem um compromisso com ele agora de noite no jardim particular.”
“Ótimo,” respondeu a figura com as espadas, “Seguimos como planejado.”
Os dois seguiram as sombras muralha abaixo e pátio adentro.
Ele observou ambos avançarem, saltando entre pedaços de escuridão, avançando até um ponto sem sombras para escondê-los. Enquanto seus colegas se posicionavam, Foehl abandonou seu posto, descendo as escadas da muralha. Ele seguiu o caminho dos outros dois, mas no final fez um desvio em direção à muralha, para uma das torres.
O primeiro guarda não conseguiu se virar por completo antes de sua garganta estar esguichando sangue. O sentinela do andar de cima ouviu algo e viu a cena do topo das escadas, mas, antes que pudesse gritar, uma pequena bola de cerâmica cruzou o recinto e se quebrou na sua cara. Uma fumaça escura invadiu seus pulmões e ele não conseguia respirar. A próxima coisa que ele viu foi outro guarda à sua frente e uma faca ensanguentada vindo em sua direção.
Foehl subiu até o andar de cima e acendeu outro cigarro. Os dois vultos voltaram a andar, cruzando a região iluminada e voltando para as sombras. Eles se aproximaram dos muros que cercavam o jardim particular do duque, cercado por um muro sem portão. A figura com o arco lançou sua corda e escalou até o topo. Puxando sua arma ela tirou uma flecha da aljava e ficou esperando seu alvo. O outro caminhou pelo campo até encontrar um alçapão escondido que levava ao interior do jardim.
“Espera, o que você estava fazendo? O combinado era você matar a vagabunda!”
“Eu sei, eu sei. Enquanto seus amigos armavam os planos de contingência, eu estava entrando em posição. Mas tivemos alguns… problemas técnicos.”
Foehl tinha uma janela de tempo pequena. Saindo da torre, o metal prateado se transformou em couro negro. Seu capacete se tornou mais fluído, assumindo a forma de um gorro preto e uma máscara da mesma cor. Andando o mais rápido possível, ele viu o vulto sobre a muralha retesar o arco para o tiro. Com uma mão, Foehl sacou uma pequena bola de cerâmica com um tufo de algodão saindo. Com alguns estalos da outra mão o tecido estava em chamas e ele arremessou o projétil por cima da muralha. A luz das chamas brilhou contra o céu da noite, visível em todo o castelo.
A flecha voou pelo ar, e a figura puxou outra de sua aljava, indicando que ela não tinha atingido seu alvo. O vulto com as espadas nesse momento deveria estar tentando emergir do alçapão dentro do jardim, apenas para descobrir que um peso convenientemente posicionado estava bloqueando a porta. Apenas uma pessoa poderia alcançar o alvo agora.
“Como assim fogo simplesmente surgiu no jardim?” rugiu Giff.
“Eu não sei! Eu só vi as luz das chamas dentro da muralha.” Foehl sussurrou em resposta, olhando ao redor para os rostos cada vez mais interessados.
“Como assim você não sabe?”
“Não chama atenção,” a voz da moça era nada mais que um sibilo, mas o tom de ameaça fez o outro parar. Em um tom um pouco mais audível para os outros, Foehl acrescentou, “Eu entendo que você está frustrado. Eu tenho um jardim também. Posso te mostrar se você quiser.”
Giff não soube como reagir, mas a mulher apenas pegou sua mão e guiou-o pela porta. Do lado de fora Foehl continuou a história.
Foehl voltou à sua forma de guarda e foi para o interior do castelo. Uma vez dentro da cidadela, ele achou um canto e sua forma mudou novamente, sua armadura se tornando mais elaborada, ornada com emblemas mais complexos. Seu rosto agora não tinha mais rugas e sua barba era preta como o céu da noite. O capitão da guarda estava… indisposto, após uma noite bebendo com um estranho que poderia ou não ter envenenado sua cerveja.
Ele navegou os corredores em direção ao quarto de onde sua vítima emergiria em breve, saindo de um túnel subterrâneo ligado ao jardim. Ninguém tentou pará-lo no caminho, os guardas abrindo todas as portas sem questionar. Alguns caíam em silêncio com sua passagem, outros pareciam decepcionados, possivelmente esperando um turno sem o capitão por perto.
As passagens eram cada vez menos trafegadas, mas ele ouviu vozes vindo de trás uma porta específica. Dela saíram o duque e uma mulher. Ela era claramente o alvo de toda a operação: Eles pareciam esbaforidos e cheirando a fumaça.
“Robbert,” chamou o duque. “Onde você esteve?”
O tom da voz teria gelado o sangue de qualquer homem, e Foehl fingiu ficar levemente intimidado.
“Perdoe-me, senhor. Tive um problema de ordem pessoal. O que é esse pandemônio?”
“Alguém ateou fogo no meu jardim pessoal, enquanto eu estava lá. Eu quero o castelo inteiro vasculhado, encontrem quem fez isso!”
“Imediatamente, senhor!” Foehl olhou do duque para a mulher que o acompanhava.
“Ah, sim, Yuna estava comigo vendo meus cavalos. Leve-a até as áreas comuns, discretamente. Ela sabe o caminho de lá.”
“Sim, senhor.”
“Ah, e aí o que você fez?” Os olhos de Giff brilhavam. “Esfaqueou ela e deixou ela sangrar? Envenenou ela? Algo doloroso, eu imagino.”
Foehl apenas sorriu.
“Ah, você nem imagina…”
Foehl guiou Yuna até um quarto que ele sabia que estava vazio e pediu para que ela esperasse dentro dele até que ele encontrasse um guarda para guiá-la. A mulher não disse uma palavra no caminho e parecia desconfiada de todos ao seu redor. Ela o fitou por alguns instantes e pareceu que não iria se mover, mas finalmente obedeceu e entrou no quarto. O suposto capitão da guarda mudou de forma do lado de fora, reassumindo a armadura de couro negro, mas deixando à mostra um rosto longo e enrugado com um bigode grisalho. Ele entrou novamente na sala.
A mulher abriu a boca para gritar, mas parou quando reconheceu o rosto do outro. Sua expressão já pouco amigável se fechou em linhas com seus lábios crispados e olhos apertados de raiva.
“O que você está fazendo aqui?”
“Depois de todo esse tempo, é assim que você me cumprimenta?”
“Como-” Ela fez uma pausa e respirou fundo. “O que você quer? Vingança?”
“Não seria uma má idéia.” Ele sacou uma faca e analisou o gume com cuidado. Olhando do seu reflexo no metal para a mulher, ele guardou a arma. “Mas eu tenho outros planos.”
“Os guardas vão chegar a qualquer momento.”
“Ainda temos algum tempo. Me diga, embaixadora da floresta é com certeza um cargo importante, especialmente com a trégua recente. Mas eu não imagino que o duque tenha te levado ao jardim apenas para saciar sua saudade de casa.”
“É sobre isso? Depois desse tempo todo você tem ciúmes de mim, Giff?”
“Não me faça rir, Yuna. Nós dois sabemos que vocês não queriam brincar com galhos e plantar sementes no jardim. Eu sei sobre a pequena masmorra dele, a que você está ajudando a popular.”
“Ele não tinha mencionado uma masmorra. Eu estava esperando deitar na grama e ver o duque com as estrelas atrás dele.”
“Ele não é o único, é? Me diga, nenhuma das fadas deu falta dos monstros que você contrabandeou?”
“Você está louco.”
“Talvez. Afinal, ninguém vai encontrar uma caverna nas montanhas do norte. Não sem isso.”
Ele tirou do bolso uma pedra azul clara e a esfregou entre as mãos. Com um brilho, a pedra projetou imagens no ar. Nelas, Yuna conversava com homens armados, entregando a eles jaulas com criaturas monstruosas. Outras mostravam os homens carregando as jaulas para uma caverna nas montanhas e umas poucas mostravam Yuna na caverna com os homens.
Por um momento a respiração dos dois era tudo que era audível na sala.
“O que você quer?” Yuna repetiu.
“Sua ajuda. Apenas um pequeno carregamento. O endereço e a carga estão aqui.” Ele puxou do bolso um pedaço de pergaminho “Não é nada muito difícil. Em troca, essas imagens não vão chegar aos seus superiores.”
Yuna leu o papel. Seus olhos se arregalaram conforme liam as instruções.
“Você tem alguma ideia do problema que isso vai causar?”
“Nada que te afete pessoalmente. Na verdade eu acho que você pode até usar isso a seu favor. Ah, e eu preciso disso com certa urgência. Se a entrega não for feita até semana que vem, essas imagens podem acabar escapando das minhas mãos.”
Com isso ele saiu da sala, batendo a porta. Do lado de fora ele reassumiu sua forma de guarda, usando um rosto jovem, sem qualquer semelhança ao rosto de Giff. Ele esperou um pouco e entrou na sala.
Yuna estava sentada paciente na cadeira, sem sinais de qualquer perturbação. Foehl a guiou para a área comum, e se perdeu na multidão de guardas que pareciam agora agitados com a descoberta dos corpos de alguns guardas mortos que haviam sido encontrados. Alguns falavam de invasores em armaduras de couro preto. Do lado de fora do castelo ele subiu para um dos postos na muralha, dizendo que tinha se perdido e não sabia onde deveria estar. Passando de um posto para o outro, ele assumiu a forma de armadura negra e saltou para a escuridão.
Os dois chegaram até uma casa. Foehl abriu a porta e entrou, seguido por Giff.
“Mas, e então? Envenenada, o meu rosto foi a última coisa que ela viu?” Ele estava satisfeito. “Mas onde entra a parte de perseguido pelos elfos?”
“Ah, isso, já vou chegar lá. Você quer outra cerveja enquanto eu conto?”
“Pode ser. De quem é essa casa, aliás?”
“Aqui está,” disse Foehl, passando uma caneca cheia. “É uma casa de uma garota da cidade. Não se preocupe, ela não vai nos incomodar.”
“O que é isso no chão?” perguntou ele dando um longo gole. ”E o que-”
Giff sentiu o sangue gelar em suas veias. Ele se abaixou para analisar o líquido cobrindo boa parte do chão, e seus dedos tocaram óleo. Quando ele subiu seu olhar, ele viu na cama uma jovem estirada, pálida. Ela tinha exatamente a mesma aparência que Foehl estava usando.
Seu braço subiu para o seu machado, mas sua palma estava formigando. A caneca caiu de sua outra mão, derramando a cerveja pelo chão.
“Me desculpe Giff.”
Ele se sentia tonto, e logo suas pernas cederam e ele caiu no chão. Sua visão estava turva, mas ele conseguiu distinguir Foehl mudando de aparência ouviu algo estalando repetidas vezes. Sua visão parecia escurecer, mas em seguida ele estava cercado de luz por todos os lados. Um brilho amarelo e quente, se espalhando por todos os lados, rugindo e crepitando conforme se alastrava. Mas a luz parecia se apagar, e ele não sentia mais calor. Ele não sentia mais nada.
Bem estilo RPG eu achei…..
Muito bm escrito
parabens
Obrigado! Fico feliz que tenha gostado!!