
A jornada em Duat
Capítulo I - O Despertar
Núbia se levantou. Não acreditava no que seus olhos lhe mostravam, um céu turvo como o fundo de um rio e, estranhamente, ela não se lembrava de como havia chegado ali. “Estranho… Eu devo estar muito cansada ou estou vendo coisas” — pensou.
Do alto de seus um metro e cinquenta e cinco de altura, ela se via isolada em um deserto de areias negras, no topo de uma das muitas dunas que se estendiam por quilômetros. Subiu um pouco mais na duna em que estava, talvez assim pudesse encontrar qualquer sinal de uma cidade ou uma estrutura humana. Por sorte, avistou próximo a um rio uma minúscula vila. Sua última lembrança antes de despertar ali era estar se arrumando para ir para o trabalho.
“Bom, não faz sentido ficar parada aqui.” Após limpar o seu rosto da fina areia negra, balançou a cabeça para limpar seus cabelos e foi quando ela sentiu um peso em seu pescoço que até aquele momento ela não tinha percebido, envolto nele estava um pesado colar de ouro com uma gema azulada.
— Mas o que? — E tirou o colar para olhá-lo melhor. — Isto é ouro maciço…
O colar, tinha preso aos cordões de ouro um pequeno disco de turquesa e, encravado neste disco, o olho de Hórus. Segundo as histórias que ouvia de sua avó, apenas os mortos recebiam amuletos como estes. Como se um fio de água gelada escorre pela sua espinha, ela entendeu.
“Oh não…” pensou. Tudo à sua volta fazia sentido agora. Aquele deserto não era um sonho estranho. Ela estava em Duat, o submundo dos mortos. Era para lá que todos que foram julgados por Toth eram enviados, ao menos o que não fossem merecedores de serem ressuscitados.
— Ísis, minha deusa, me ajude…, por que eu estou aqui?
Capítulo II — A Barca Solar
No limiar do rio, flutuava lentamente uma barca enorme de madeira. Às margens, um homem magricela andava apressadamente para tentar acompanhar o ritmo do barco e ao mesmo tempo berrava para uma criatura a bordo:
— É isso mesmo que você ouviu sua cabeça de galinha!
— Falcão. — Corrigiu calmamente a criatura
— Não interessa, você VAI me levar nessa barca, eu não vou andar neste fim de mundo.
O homem encarou a criatura. Seria cômico dado a circunstância correta, mas a figura tinha um belíssimo corpo humano, de pele morena e porte atlético, vestindo um saiote branco de algodão e coberto dos pés ao… bico(?) de colares e adornos delicados de ouro. Do seu pescoço para cima, ao invés de uma cabeça humana, existia uma cabeça de Falcão, com olhos de um intenso tom amarelado.
— Então, você vai me deixar subir? – Resmungou Diego
— Mortal, você ao menos tem ideia de onde estamos?
— Muito provavelmente numa versão do inferno e eu tenho certeza de que se explicar ao “deus” daqui ele irá entender que isso é um engano!
— AHAHAHAH — Riu-se gostosamente, terminando num guincho — Perdoe-me, meu filho, mas NINGUÉM vem para o Duat por engano… — E jogou uma escada de cordas — Suba e torça para que encontremos Apóphis em nosso caminho!
— Apáfis?! Me ajude a subir nisso e pare de gracinhas — agarrou a corda com esforço — Ungh… eu não deveria ter demitido meu personal.
O homem-falcão puxou a corda para o barco e assim que Diego caiu no rio, ele calmamente estendeu seu cajado e puxou o corpo dele para dentro da barca.
— Absurdo. — Disse enquanto tentava em vão se secar — Tenho quase certeza de que houve um engano!
— Por que acha isto?
— A minha vida toda eu ouvi que o inferno era diferente. — E encarou a criatura
— Certamente houve um erro. Mas foi de sua crença, não de minha existência.
— E você quem é?
— Rá, Deus Sol, criador de toda a forma de vida. Bem-vindo ao meu Barco, Diego.
Ele apenas abriu a boca e não emitiu nenhum som em resposta. Se aquilo fosse real, tudo que ele acreditou durante toda sua vida, acabou de se desfazer.
Capítulo III — O Guia
Ela não sabia mais por quantas horas havia andado, mas seus pés estavam começando a protestar. As pequenas vilas às margens do rio estavam em ruínas e nenhuma delas tinha sinais de que algum dia alguém esteve ali. Foi então que ouviu passos. Assustada, ela se virou e ficou paralisada pelo que via, por um lado era uma criatura incrível, por outro, sua cabeça era intimidadora.
À sua frente estava um homem de quase dois metros e meio, sua pele era quase tão escura quanto a areia e vestia uma túnica cinza com uma armadura simples de couro. Ele segurava firmemente uma lança dourada e de aparência letal. Mas o mais curioso em sua aparência era a cabeça, uma combinação de Porco-formigueiro com orelhas de cavalo e olhos de raposa. Definitivamente era uma criatura cruel.
— Abaixe-se. — Rugiu para ela.
Seus joelhos pareciam ter derretido com a ordem e ela caiu no chão, ao mesmo tempo que pode ouvir um guincho e algo pesado e molhado caindo em suas costas e escorrendo para o chão.
“Sangue!” — ela gritou em sua cabeça. Então tudo que se pode ouvir além do assovio do vento era o ganido de dor de uma criatura. Nubia olhou pelo canto dos olhos e pode ver a criatura sendo furada mais uma vez e silenciando-se.
— Não! Por favor! Pare! — Ela gritou.
— Parar? Ele ia te matar — Olhou curioso dela para o cadáver no chão — Vocês mortais são estranhos. — Rosnou baixinho e cuspiu na criatura — Venha. — disse agarrando seu pulso — Eu ainda preciso pegar um barco hoje.
— Ai! — Protestou — Você está me machucando! Me solta!
Ele a soltou e a encarou por um momento. Respirou profundamente e respondeu:
— Você está no Duat por engano. — E apontou para o colar — Era pra você estar no Vale dourado…
— Você é Anúbis?
— Eu sou Seth — Bufou incomodado — Deus do deserto, Guia das almas perdidas, e você é uma. — Respondeu apressadamente sem paciência.
— Seth não guia as almas… O que você está fazendo aqui?
— Ousa me questionar mortal?
— Eu achei que você… que tudo isto aqui fosse uma lenda.
— Eu pareço uma lenda pra você? — Questionou incomodado.
— Bom, ao menos nas lendas, você era mais bonito… — Observou
— BAH! — E virou-se de costas e começou a andar para o rio
— Ei espera! Eu sou baixinha! — E correu para alcançá-lo — Onde estamos indo?
— Esperar o barco.
— Pra que? – olhou para ele curiosa
— O Barco de Rá pode nos levar a qualquer lugar. Se formos a pé iremos morrer aqui, graças a criaturas como aquela lá atrás. — E apontou para ela — Não perca seu colar mortal. Vamos precisar dele.
— Rá… em DEUS Rá? O DEUS SOL?
— Ele mesmo. — Respondeu — E, apesar de ser o deus sol, não é muito brilhante.
— Ao menos não é um assassino.
Seth soltou uma risada áspera e maligna
— É por isto que você está aqui, não é? Não bastou sua inveja por Osíris, agora quer também matar Rá?
— Apóphis um dia irá conseguir matar aquele falcão idiota. — Sentando-se — E quando isto acontecer, eu irei tomar o barco para mim e navegar para fora daqui.
— Você entendeu que se Rá morrer, não tem um para fora daqui?
— Não com o seu colar, ele é minha passagem para fora daqui!
— Inacreditável. — disse tirando seu colar — Você só me ajudou por causa disto?!
— Sim. — A observando indiferente.
Ela jogou o colar com raiva na direção do rio, que nem chegou a tocar na água, simplesmente reapareceu em sua mão.
— Acho que seria melhor se você se jogasse no rio.
— UGH! Você é um imbecil! — E jogou em vão o colar na direção dele — Você é a única pessoa que pode ajudar a combater qualquer coisa nesse lugar e tudo o que você se preocupa é em roubar o barco? Não acredito, você é melhor que isto!
— Núbia, Nenhum dos outros deuses exatamente gostam de mim. Ainda mais depois do que eu fiz… — Disse em um tom um pouco triste — Eu sou um monstro.
— Olha…, — Disse ela um pouco comovida — A minha vida toda eu ajudei pessoas horríveis a melhorarem. E você poderia ter deixado eu ser morta por aquilo, mas você me salvou, se é que da pra morrer mais de uma vez… — Pensou em voz alta.
— E o que você quer dizer com isto?
— Todas as noites Rá luta contra Apóphis e, mesmo sabendo que isto nunca terá fim, ele persiste. Pois ele entende que se desistir, tudo o que criou acabará.
— É fácil falar quando se é belo e todos lhe amam.
— Você nunca fica de bom humor? — E lhe deu um cutucão — Seth, em algum momento você fez boas escolhas.
— Nenhuma delas me levou a ser Faraó. — Retrucou.
— Ser o “grande Faraó” não é tudo. Não é isto que lhe define e sim suas escolhas.
— Vocês mortais são estranhos…
— Por que ter uma cabeça de animal é completamente normal, imagino eu?
— BAH. — Resmungou revoltado — Certo, eu irei ajudar o cabeça de falcão.
— Obrigada — Respondeu Núbia num sorriso.
— Não me agradeça ainda, mortal… Oh, eles chegaram!
Capítulo IV – A escolha
A visão da barca de aproximando era assustadora, serpentes estavam abordo e rodeando as águas próximas, não sendo suficiente partes do convés estavam em chamas. Rá lutava ferozmente contra uma enorme serpente que começava a rodear seu corpo.
— Desista Rá — E olhou fixamente para seus olhos — Você perdeu hoje!
— Nunca! Eu não irei desistir! Desista Apóphis!
A serpente apenas riu, o veneno finalmente estava fazendo efeito. Quase poderia sentir o Corpo de Rá desistindo. Ela se preparou para dar a última mordida certeira em sua jugular, quando uma lança a perfurou. Com um silvo horrorizado ela se afastou de sua vítima. Seth subiu no barco em uma velocidade impressionante.
— SETH?!? — Indagaram a cobra e o falcão juntos.
— Ande, Rá, levante-se. Há uma chance de vitória — E puxou sua lança do chão.
— Eu não confio em você! — Resmungou Rá.
— Que ótimo, assim como eu te odeio.
Núbia subiu ao barco encharcada e mal teve tempo de se jogar para o lado. Os três deuses estavam engalfinhados em uma luta feroz, mas a serpente estava cada vez mais machucada por conta da lança, algo nela era extremamente destrutivo para as suas escamas. Núbia se escondeu atrás do Leme e fechou seus olhos. Tudo que pode ouvir foram os rugidos assustadores deles. E então tudo se silenciou.
“A… acabou?” Ela pensou e abriu os olhos, Apóphis estava fugindo, deixando marcas vermelhas por onde deslizava. O barco estava numa péssima condição. Diego saiu de dentro de um barril, tão assustado quanto Núbia. Ela começou a andar pelo convés na direção de Seth.
— Vocês têm ideia do trabalho que vai dar pra consertar isso? — gritou Diego.
— Acostume-se, mortal. — Rá respondeu calmamente. — Seth? O que você faz aqui?
— Te salvando de não morrer. — E limpou o sangue da lança
— Não é de seu feitio fazer isto…, — E estendeu a mão — mas obrigado.
— BAH! Você pode me agradecer levando-a para o Vale.
— Ela?
— Eu… Senhor Rá. — Acenou Núbia sem graça em retorno.
— AH, então foi aqui que você caiu. Estávamos lhe procurando. — E se ajoelhou ficando quase da mesma altura que ela — Você deveria ter ido para o Vale do Aaru, Esperar para renascer. Infelizmente você caiu aqui por engano, aparentemente alguém — e olhou para Diego. — Tentou trocar os corações da balança do julgamento.
— Com todo respeito, Senhor Rá… Eu quero ficar e ajudar os feridos…
— Esta é a sua escolha?
— Sim, eu quero ajudar.
— Então seja bem-vinda ao meu barco.