Logs.

Começou com anticoncepcionais obrigatórios. Cursos e provas para ver se você estava habilitado a ter filhos. Dois, no máximo. A maioria dos casais que queriam ter filhos eram jovens e não passaram nos cursos. Os mais habilitados eram velhos que não queriam ou mesmo não poderiam ter filhos. A população no mundo começou a cair. Essa era a intenção, o planeta estava superpopulado. Mas quando a população atingiu um nível sustentável, o Grande Governo deveria ter cortado alguns dos métodos contraceptivos obrigatórios, mas eles não cortaram. Então a população continuou a cair.

As pessoas começaram a morrer. Sem o afeto de algum familiar ou o riso das crianças, elas não tinham mais motivos para viver. Então o Grande Governo lançou um programa de pequenos robôs que serviriam como crianças. Seriam os filhos que as pessoas nunca tiveram. E então elas voltariam a trabalhar. Com a população caindo a cada dia, o número de trabalhadores também caía a um nível desesperador. O Grande Governo fez robôs mais limitados para trabalharem nas fábricas, nas fazendas, nos bancos, nos correios, nos comércios…

As pessoas ainda estão morrendo. Pessoas morrem, não tem muito o que fazer sobre isso. Mas Gaya está melhorando, menos emissões de gases poluentes, menos pessoas pra comer, menos árvores a serem cortadas. Parece que no final de tudo, Gaya sai ganhando. O Grande Governo não está feliz com isso, creio eu: quanto mais doente Gaya está, mais motivos eles têm para explorar o resto do Universo.

O Grande Governo descobriu uma maneira de transformar a memórias das pessoas em dados. É possível fazer uma transferência de memórias. Agora, ninguém mais vai morrer. Todos vamos viver pra sempre. Gaya está a cada dia melhor. Será um bom futuro. Os corpos serão perfeitos, quase indistinguíveis de um ser humano orgânico. Os rostos serão os mesmos, com expressões e vários tons de voz. E upgrades virão, e todos poderão melhorar a si mesmos. Finalmente, alcançamos a imortalidade.

Hoje foi o dia da região Alfa.7.b trocar de corpos. Parece que não é algo optativo.

A transferência de memórias é perfeita, apesar de que os corpos ainda não o são. É preciso um longo período de reabilitação, e qualquer queda pode danificar o material, mas há pontos de conserto, as Oficinas. Agora os médicos também são robôs.

Não há livros sobre os novos corpos. Apenas os desenvolvedores e os Médicos Robôs sabem o que há dentro de nós, mas pelo menos podemos salvar nossas memórias na Nuvem, caso alguma coisa aconteça e não tiver quem nos arrume.

Os robôs crianças estão cada vez mais em alta. Esses novos corpos não produzem descendentes, então eles são uma ótima opção. Alguns os desligam quando eles começam a incomodar. Já os mais jovens os tratam como humanos, como se eles um dia estivessem sido humanos orgânicos.

Há humanos transformando seus novos corpos em coisas diferentes. Acrescentando asas, caudas, mudando as cores… é bastante estranho.

Todos os novos corpos são de tamanho adultos, pois não havia um número grande o suficiente de crianças para a construção de corpos descartáveis. Ninguém quer corpos de criança. É considerado doentio. Por isso ainda é possível ver algumas crianças correndo em seus corpos orgânicos.

Eu vi um jovem hoje. Um jovem humano. Um jovem humano com o corpo orgânico. Nós sentamos para conversar. Ele disse que não quer ter um “corpo-máquina” (como ele mesmo chamou). Ele disse que, pelo menos agora, ele quer ser um “humano normal”. Eu não entendi muito bem. Quem não quer viver para sempre? Ele me disse que algum dia isso ainda daria errado.

Alguns de nós ainda temos o corpo humano guardado para o caso de algum problema, mas é muito caro para manter um corpo humano vivo e saudável. E o processo de transferência de memórias para corpos vivos nunca foi realmente testado…

A vida de corpos inorgânicos é bem pacata. Sem muitas descobertas ou coisas novas. Mas mesmo assim, eu descobri que nossa energia vem da luz solar.

Hoje também houve uma consulta com os Médicos-Robô. Eles nos explicaram algumas coisas sobre nossos corpos. Eu fiquei um pouco assustada na verdade… é certo que eles são bem mais humanizados que os robôs das fábricas, mas… tinha alguma coisa no tom de voz que eles usavam, nos mandando usar a Nuvem, não gastar nossa memória. Alguma coisa estava errada. Eu passei o dia pensando no que o jovem humano orgânico falou.

Hoje eu vi um homem. Não o jovem daquele mês, mas um senhor. Ele deveria ter uns 80 anos. Eu fui conversar com ele. “Não, não. Eu não troquei de corpo por vontade própria. Eu já estou bastante velho, e minha esposa morreu há algum tempo. Eu não vejo motivo para viver para sempre se não for com o amor da minha vida. Ela era meu motivo, e agora ela já não está mais aqui.”

Meus pais colocaram todas as lembranças deles na Nuvem. Não cópias, as originais. Eu estou preocupada. Eu tenho lembranças na Nuvem, todo mundo tem. Mas são cópias, caso algo aconteça. As originais estão comigo e ficarão comigo nem que eu precise de uma memória externa.

Eu fui para a praia pela primeira vez. Ela estava limpa. Nossos corpos precisam de ajustes para lidar com o litoral, mas valeu a pena. O mar é lindo, e a areia é macia. Há algumas aves. Percebi que como os humanos pararam de comer, a morte dos animais diminuiu bastante. Eu vejo peixes.

Eu nunca tinha visto o por do sol desse ângulo. É lindo. Essa é uma lembrança que eu nunca vou esquecer.

Eu era legista. Mais por curiosidade pelo corpo humano do que qualquer outra coisa. Agora os robôs médicos cuidam de tudo. Mas eu sou curiosa. Eu fiz uma coisa meio proibida. Eu comecei a estudar meu corpo novo. Não que seja proibido, mas… não é recomendado. Mas eu tenho contatos, eu consegui um corpo inorgânico vazio. Então eu continuei meus estudos nele. Eu posso dizer eu já sei bastante sobre meu novo corpo.

Hoje eu recebi uma mensagem do jovem humano orgânico. Parece que algum parente dele começou a agir de modo estranho. Como se não fosse mais a mesma pessoa. Como se houvesse perdido suas memórias. Eu falei pra ele procurar na Nuvem. É para todas as coisas estarem lá. Ele disse que não estavam.

Eu ainda estou pesquisando sobre o parente do jovem. Eu comprei uma memória externa para mim. Fiz um backup de todas as minhas memórias ali. Talvez mais para frente eu acabe comprando outras. O problema é que elas estão a cada dia mais caras e mais difíceis de encontrar.

Eu ouvi de mais pessoas que perderam as memórias. Mais duas. Pessoas totalmente não relacionadas entre si. Eu acho que eu não sou a única curiosa sobre o corpo novo. Espero que eles consigam recuperar as memórias. Nós nada mais somos do que memórias…

Eu encontrei uma loja com uma promoção de memórias externas. Eu comprei todas. O bom de não precisar comer é que você pode gastar esse dinheiro com outras coisas. Eu já tenho a minha casa, minhas coisas… então é fácil.

Eu recebi uma mensagem do Grande Governo sobre a compra das memórias externas. “Por favor, use a Nuvem, ela não polui e não gasta recursos”. Acho que está na hora de parar de usar o cartão.

Eu pareço paranoica, mas eu simplesmente não quero me perder se acontecer alguma coisa com a Nuvem.

Eu estou pensando em vender minha casa e comprar um trailer. Sair por aí. Viajar. Mas eu não sei se pego um elétrico ou um por energia solar e eólica. Eu estou mais pra a segunda opção. É bastante prático quando você para pra pensar sobre isso.

O Grande Governo está omitindo alguma coisa sobre a perda de memórias na Nuvem. Eu estou preocupada. Está acontecendo alguma coisa e o Governo não consegue consertar. Isso é ruim. Mas também, quem guarda todas as suas memórias… quem guarda tudo de si num programa feito por humanos? Humanos são falhos, sejam eles orgânicos ou não.

Eu me peguei perguntando como o jovem humano orgânico continuou orgânico. Velhos e crianças sim, é bastante optativo, mas ele é um adulto normal… Eu mandei uma mensagem para ele.

Ele respondeu. Ele é ilegal. Ele disse que há vários outros humanos como ele que tem o corpo orgânico. Eles moram escondidos nas casas de parentes, em locais mais afastados e vazios. Como a praia. Ele também me disse que se algum dia eu precisar, eu posso ir para lá.

Hoje eu estava observando os olhos do corpo vazio. Eu encontrei pequenas câmeras. Elas não estavam ligadas somente no cérebro. Elas também estavam ligadas a uma espécie de antena. Eu fiquei pensando se em alguma Grande Casa tem alguém observando tudo o que eu estou fazendo. Realmente, eu pensei em abrir minha própria cabeça e procurar pelas antenas. Mas eu poderia morrer. E a ideia desse novo corpo é exatamente o contrário: continuar vivo.

O Grande Governo não veio me prender. As antenas não são para câmeras em alguma salinha escura.

Eu finalmente descobri pra onde vão as antenas. Há alguns programas de compartilhamento de vídeos, ou mesmo de memórias virtuais que postam/guardam direto, sem você precisar fazer um upload. Bem… eu nunca assinei nada disso, então minhas antenas estão desativadas (eu fiz questão de verificar, então, sim, eu abri minha cabeça, e, sim, foi assustador).

O Grupo precisou de ajuda (o Grupo de humanos orgânicos). Havia uma mulher estava grávida, mas ela não queria ir ao hospital. Ela corria o risco de ter seu corpo trocado logo após o parto, e os bebês retirados dela (ela não fez nenhum dos cursos obrigatórios nem mesmo tomava os medicamentos). Eu não fazia ideia que ainda existiam pessoas querendo filhos. Eu sou o mais próximo de um médico que eles conhecem. Foi terrível. Ela já estava em trabalho de parto havia um dia inteiro…

Às vezes eu penso se essa ideia do Grande Governo foi realmente uma boa ideia. Às vezes eu penso que é uma ideia muito cara para ter sido entregue gratuitamente. Mas não consigo pensar em um motivo que seja algo ruim.

O pai do meu jovem amigo parece infinitamente mais feliz sem suas memórias antigas. Aliás, não só ele, como todas as outras pessoas que perderam as memórias que eu tenho observado. Elas estão mais jovens, mais alegres. Eu sei que todos temos memórias tristes e ruins, mas elas também são importantes para formar quem somos. Preciso levar memórias físicas aos meus pais e convencê-los.

Eu cheguei tarde demais. Quando meus pais abriram a porta da casa deles… não eram meus pais. Tinham as mesmas feições, mas era somente isso. O jeito de falar, de agir… pareciam crianças brincando de adultos. Eles mesmo não pareciam se conhecer há muito tempo. Eu vou ficar por aqui alguns dias, ver o que posso descobrir.

Não são meus pais. Não são mais humanos. Eles apenas têm “reações” que simulam alegria. Não passam de robôs com os rostos dos meus pais. Eu não posso ficar aqui. Eu não posso ficar.

Eu pesquisei mais a respeito depois de sair da casa dos meus pais. Eu pesquisei pelas memórias deles em todos os lugares, e nada. Então… eu fiz um pequeno funeral. Estou acostumada com a morte, mas… não dessa maneira. Eu visitei outras pessoas que perderam as memórias, e é exatamente a mesma coisa. Não estão realmente felizes, apenas simulam as ações de uma pessoa alegre. Aposto que há alguém no alto escalão por trás disso. Não… essas pessoas não eram nenhuma ameça…

Eu pesquisei ainda mais a fundo. O Grande Governo está envolvido, sim. Mas não na deleção das memórias! Ele está envolvido em acobertar tudo isso! Precisamos tirar nossas memórias da Nuvem! Parece que tudo começa ali, quando apagam suas memórias!

O bebê que eu ajudei a trazer ao mundo já está começando a engatinhar. É tão pequeno e frágil! Como uma criança tão pequena consegue sobreviver num mundo assim? O jovem queria me mandar uma foto pela Nuvem, mas eu prefiro não baixar arquivos por lá. Então, tenho apenas uma descrição da criança. [—] Melhor não salvar. Eu não quero causar problemas.

Hoje eu estava navegando pela Nuvem. Tudo começa ali, então deve existir algo ali! Bem, eu encontrei o que parecem ser traços de um vírus ou de uma programação independente. Sim, agora tenho certeza que o Grande Governo está acorbertando a situação. O pior é que nem posso sair por aí fazendo perguntas. Eles têm olhos em todo lugar, sejam eles quem forem.

Eu consegui uma “amostra” do vírus/programação independente. Bem, eu consegui uma grande parte da programação e coloquei num simulador. Eu copiei algumas memórias minhas ali. Vamos ver o que acontece. Eu vou anotar os resultados.

Bem, isso foi… estranho. Primeiro, o vírus entrou no sistema e fez uma varredura. Depois ele simplesmente se auto desligou. Eu acho que vou precisar de uma cobaia.

Eu fiz simuladores mais complexos. Coloquei todas as minhas memórias. E nada. Pelo menos consegui pegar o vírus todo dessa vez. Talvez ele saiba que já existe uma pessoa com minhas memórias… querendo ou não, havia cópias delas na Nuvem. Pode ser isso. Bem… acredito que o próximo passo seja levemente antiético.

Devo admitir que foi mais fácil do que eu imaginava. Uma pessoa do Grupo me apresentou a um grupo mais “underground” que possivelmente haveria pessoas dispostas a tentar o vírus. Então fiz o back-up de 3 pessoas diferentes em memórias físicas e pedi que ficassem vagando pela Nuvem. Eu nunca tinha visto alguém pessoalmente vagar pela Nuvem. É assustador. Os olhos ficam fora de foco, e todas as respostas são quase automáticas. Em cerca de dois dias o espécime #1 (não vou citar nomes) contraiu o vírus. Eu fui monitorando pelo sistema, e primeiro o vírus fez uma varredura, e selecionou todas as memórias tristes. Essas foram aos poucos apagadas. Depois, aos poucos, as memórias mais neutras, e por último as memórias felizes (que a esse ponto já estavam incompletas). A perda de memória é gradual, então se passa quase despercebida. Levou em torno de 2 semanas. Depois de exatos dois dias da deleção da última memória, o vírus mudou. Era como se ele se “mutasse” em algo novo. Foi desse ponto em diante que o #1 deixou de ser um humano. Desse dia em diante ele apenas simulava reações alegres. Serei mais breve com os espécimes #2 e #3.

#2 – contágio depois de 4 dias navegando pela Nuvem.

– memórias apagadas durante uma semana (mesma ordem, T → N → F)

– após dois dias da deleção da última memória, o vírus mutou.

– não apresentou mais reações “humanas”, apenas simulações.

#3 – contágio ao acessar fisicamente a mente do #1.

– memórias apagadas instantaneamente.

– apresentou um comportamento agressivo e assustado por alguns segundos, e logo começou a simular reações alegres.

-algumas horas depois, ele deixou de simular reações humanas.

Eu não preciso dizer que perdi algumas memórias físicas. Descobrir que o vírus passa de forma tão agressiva fisicamente foi uma descoberta importante. Eu fiquei feliz do #3 ser impetuoso e teimoso. Eu consegui restaurar perfeitamente a memória do #2. Eu não consegui fazer um antídoto para o vírus, por isso eles ainda estão comigo. As memórias do #1 estão há 80%. Ele não reclama. Quanto ao #3… não sei se há algo a ser feito. O contágio foi agressivo e muito eficiente. Parece que todas as configurações que vieram com o corpo foram reescritas. Não há como salvar uma pessoa com contágio físico.

#3 está se comportando de forma estranha. Não somente ele deixou de simular as reações humanas, como está se tornando cada vez mais… menos humano e mais máquina. Eu estou estudando desesperadamente, algumas pessoas do Grupo estão ajudando. Precisamos encontrar uma maneira de destruir o vírus.

#2 e #1 estão “estáveis”. Tudo o que precisam fazer é recolocar suas memórias todos os dias, e o vírus se mantém controlado. Ele volta a sua conformação anterior e recomeça a função de apagar as memórias. Mas isso está a cada dia menos efetivo. Eu não contei a eles, mas… eles podem ver o #3 preso numa cadeira, num canto distante do trailer.

CONSEGUIMOS! Descobrimos um antídoto para o vírus! Foram precisos dias de programação (no meu caso ininterruptos), mas conseguimos. Eu mesma fiz uma programação independente no meu sistema, para caso eu seja infectada, à primeira memória apagada meu sistema já lançará o código do antídoto. Então só precisarei recolocar as memórias. Espero que dê certo. #2 e #1 ficaram com algumas sequelas, mas nada que um bom programador independente possa consertar – se eles quiserem. Ofereci o contato de um conhecido, e pedi para que eles continuem em contato comigo. Testemos, agora, no #3.

Bem, foi um fracasso. Perdemos #3. Uma vez infectado fisicamente, não tem o que fazer. Agora, no momento, estou debatendo o que fazer com ele. Ele nem mais simula as reações humanas. Ele é só máquina. Se por acaso o #3 infectar mais alguém – já que é isso que vírus fazem, infectam – não há o que fazer. Eu acredito que precisemo eliminar a ameaça logo cedo. Ouço um grito de dentro do trailer. Oh não!

Foi um fracasso. Um acidente levou a outro, e agora estamos um pouco fora de controle. Arthur Um jovem programador entrou no trailer, e #3 estava solto. Ele forçou uma conexão mental física e passou o vírus adiante. Tentamos parar o #3 e colocar o código do antídoto, mas foi tudo muito rápido. Perdemos um corpo. A sorte deste jovem em questão, é que eu carrego um corpo extra por aí, e ele é mais paranoico que eu, então em algumas horas ele estava de volta. Bem, sem as memórias dos últimos minutos, mas…  O mais perigoso foi que #3 conseguiu fugir. Demos um alerta de uma pessoa espalhando um vírus por conexões forçadas (duas coisas proibidas). Espero que os Policiais Robôs consigam dar um jeito. Enquanto isso vamos tentar limpar o corpo do Arthur nosso jovem programador para voltá-lo ao seu corpo original.

Descobrimos que nosso pequeno “acidente” com o #3 não foi o único. Isso aconteceu ao redor do mundo, quase ao mesmo tempo. Dizem que tais pessoas já estavam infectadas com um “pré-vírus”, que forçou-as a agirem da maneira como agiram. Estão chamando este acontecimento de “O Evento”. Se realmente aconteceu ao mesmo tempo, essa pode ser uma hipótese plausível. Mas o que mais me assusta, é que nenhuma dessas pessoas foram encontradas, e já faz tempo que o Evento aconteceu.

Está começando a ficar perigoso sair nas ruas. Pessoas estão desaparecendo. E parece que não há distinção. Eles chegam por trás, forçam uma conexão e passam o vírus adiante. E depois disso, são alguns minutos para que você se torne apenas um transmissor. Pelo menos, é o que eu acredito que está acontecendo. Vi algo parecido ontem a noite. Eu não sei se quero ver onde isso vai dar… dizem que eu sou paranoica, mas… eu sei que pessoas estão sumindo! Isso está aparecendo nos grupos mais escusos, nas partes mais afastadas da Nuvem, mas eu sei que está acontecendo! Eu vi!

Os “boatos” parecem ter chegado até o Grande Governo. Todos fomos convocados há uma consulta nos hospitais mecânicos. Médicos Robôs desfilavam pelos corredores, com suas expressões falsas. Foram feitas algumas perguntas, alguns testes, e eles queriam que alguns testes fossem feitos fisicamente, com cabos e troca de arquivo! Eu me recusei. Hoje em dia está perigoso se conectar com qualquer um… até mesmo nos hospitais.

Disseram que as consultas eram para confirmar o bem-estar de cada um, e que não podemos ficar estressados nesta situação de crise. O Grande Governo diz que dará conta do problema. Mas eu não acredito. Eu não creio que eles tenham poder para isso. Atém porque, durante a consulta, eu vi algumas coisas. Eu instalei olhos melhores, por causa do meu trabalho. Eu vejo, eu enxergo, muito bem.

Eu vi um Médico implantando o vírus em uma jovem. Agora eu tenho certeza. Eu revi minhas memórias, eu revi o vírus que temos aqui. Ele estava implantando o vírus em uma jovem. Médicos Robôs não têm personalidade, eles têm apenas comandos e programações. Minha simulação não foi afetada pelo vírus, então não sei se os Médicos seriam afetados… e eu não posso simplesmente roubar um Médico. Mas… eles poderiam ter em sua programação implantar o vírus…

Eu procurei pela moça na Nuvem, e encontrei sua localização. Não é muito longe, então fui até a casa dela. Eu já estava com meu programa de proteção instalado, e fui longe o suficiente para fechar de forma permanente a porta para troca de dados de forma física. Bem, eu bati à porta, mas ninguém atendeu. A porta não estava trancada, então eu entrei. A casa parecia vazia, mas eu conseguia ouvir uns ruídos vindos de baixo, então entrei furtivamente no porão. Eu estava esperando computadores e geradores e coisas do tipo, pois a menina sempre trabalhou nessa área… o que eu não esperava eram pelo menos 20 pessoas ali dentro, trabalhando como máquinas.

Talvez pessoas seja um eufemismo. Eram máquinas. Pessoas ainda precisam de cadeiras e espaço pessoal. Havia cabos ligando todas aquelas pessoas e computadores. Linhas de programação rodavam nas telas e os olhos de todos eles estavam vidrados. Eu sai de lá. Aquilo não é humano. Eu preciso revisar minhas memórias, talvez encontre alguma pista.

Todas as pessoas naquela sala estão “sumidas”. Ninguém deu queixa, pois a Nuvem está constantemente atualizada, mas eles não respondem mensagens ou ligações. Isso está me preocupando. Cheguei até a entrar em contato com o cônjuge de uma das pessoas, mas a única coisa que recebi foram reações alegres (de longe não sei dizer se são ou não simuladas, mas tenho certeza que são). Talvez o #3 não tenha criado um exército de transmissores, mas que o vírus está mais inteligente, isso não posso negar. Mas preciso buscar por mais informações antes de chegar a conclusões.

Passei alguns dias buscando informações. Agora está mais difícil para mim. Não posso mais acessar a Nuvem sozinha, preciso de um computador. Cada vez que eu acessava a Nuvem, eu era infectada pelo vírus, mas meus programas de proteção excluíam o vírus do sistema. Eu imaginei que estava sendo constantemente infectada por causa dos programas. Mas não é. Parece que o vírus ataca grupos de pessoas. Famílias, amigos próximos, ou mesmo pessoas que só morem juntas. E isso faz todo sentido! Pois aí elas não contam para ninguém e são capazes de manter as aparências. Por isso que eu estou sendo infectada no momento em que acesso a Nuvem. Meus pais… já se foram.

Eu comprei um dos melhores computadores do mercado. Ainda tenho bastante dinheiro sobrando da venda da casa. Coloquei todas as informações necessárias na mão, pois não quero me conectar fisicamente. O vendedor disse que este nunca foi usado, mas… o vendedor era um Robô. Se as coisas seguirem como estão, daqui a pouco usarei um chapéu de papel-alumínio…

Eu não sei o que fazer. Não consigo mais encontrar novas informações, e não consigo apenas viver minha vida. Arthur Meu amigo programador veio, finalmente, me devolver o corpo extra. Nós conversamos, e decidimos continuar a estudar o vírus e compartilhar qualquer informação. Ele checou meu computador, e está tudo bem. Me sinto uma pessoa do começo do século passado, sem poder acessar a Nuvem diretamente, precisando de um computador… é trabalhoso. Mesmo antes dos corpos inorgânicos tínhamos os implantes oculares, então… a qualquer momento, a informação estava ao nosso alcance. Era simplesmente pensar a respeito. Vamos dar um jeito para que o vírus pare de me alvejar.

Finalmente. Conseguímos criar uma simulação que o vírus reconheça como sendo eu. Agora posso acessar a Nuvem sem medo (mas ainda usarei o computador para as coisas mais importantes: eles são mais difíceis de rastrear). Nós pensamos em colocar o código-antídoto na Nuvem, para que as pessoas possam se proteger, mas temos medo de que os responsáveis pelo vírus descubram. Se eles descobrirem, será ainda mais difícil. Então compramos várias memórias leves e instalamos o antídoto. Basta que você tenha um back-up das suas memórias, e poderá ser você novamente. Creio que assim poderemos ajudar algumas pessoas, pelo menos por aqui.

Eu preciso viajar. Estou a tempo demais enfurnada no trailer. Parece que as coisas estão se normalizando. Arthur Meu amigo programador distribuiu algumas memórias leves com o código antídoto, pelo menos para pessoas mais próximas. Algumas delas nos disseram que não estão usando a Nuvem, mas sim algumas Redes alternativas. Pelo menos para guardar as memórias. Eu até abri contas em algumas delas, mas continuo abraçada às minhas memórias físicas.

Eu revivi todas as memórias de quando fui a praia. É incrível poder sentir a brisa do mar e a textura da areia de minha própria casa.

O dia aqui foi calmo. Mas em cidades menores, mais ao sul, cidades que ninguém da atenção ou importância, o caos reina. E quando eu digo caos, eu quero dizer uma geral monotonia alegre. Pequenas cidades de 100 a 200 mil habitantes já estão tomadas pelo vírus. Mas ninguém reporta nada, e os para os Médicos essas pessoas estão normais. Bem… os próprios Médicos estão implantando o vírus…

Hoje analisei minhas memórias sobre a casa da moça com Arthur o programador. Pelas minhas memórias, ele concluiu que, realmente, eles não parecem humanos. E seja lá o que estivessem codificando, não parecia muito bom. Não é saudável ficar conectado com tantas coisas ao mesmo tempo. Não para um ser humano, seja ele orgânico ou não. E… bem, todas as pessoas “desaparecidas” estavam ali. Não acredito que isso seja apenas uma teoria de conspiração ou uma paranoia. Achamos que tem algo acontecendo.

A população de Gaya diminuiu bastante desde a implantação das regras sobre reprodução. Robôs tomaram a maior parte dos trabalhos. Os seres humanos vivem somente para o prazer. Não há mais nada a ser feito. Arte. Arte ainda pode ser feita. Agora com mais tempo e praticamente nenhuma restrição física, inúmeros grupos de coreografia surgiram. Contudo, ainda há, em alguns cantos escuros, humanos orgânicos. Eles apenas vivem. Têm suas fazendas. São, em sua maioria vegetarianos, porém alguns comem proteína sintética… eu imagino… deve ser como viver em outro mundo. Sem crianças registradas nascendo, eu temo que uma parte dos humanos inorgânicos sejam inteligências artificiais. Eu digo isso porque… bem, Arthur o programador é uma.

O que me diferencia de Arthur do programador? Ele foi criado como uma criança, depois como uma adolescente. Foi à escola, fez amigos. Trocou de corpo. Ele comprou um corpo normal, como o meu. Há metal por baixo da pele sintética. Assim como eu. Seus cabelos não são reais, assim como os meus. Suas memórias formaram o que ele é hoje. Assim como eu. Mas ainda sim… ele não pode receber um corpo inorgânico. Ele precisou comprar um. Ele não pode andar por aí sem que em seus documentos tenha o nome de seus “responsáveis”. Então ele falsificou seus documentos. Quantos há lá fora como ele? Quantos “Artificiais” estão lutando contra o vírus agora, para salvar a humanidade? E, mais importante, são eles tão diferentes assim?

A poeira baixou. Me sinto uma pessoa que inventa teorias conspiratórias. Imagino se me receberiam num grupo com minhas ideias. Eu estou sentada à porta do trailer, vendo o pôr do sol. Os corpos inorgânicos salvaram o meio ambiente. Gaya está viva mais uma vez e não está morrendo. Mas… eu sinto que algo ruim está para acontecer.

Apesar de tudo, o dia está calmo. A noite passa devagar, e o cometa Treiny brilha cada vez mais forte. Eu espero vê-lo passar uma vez.

O cometa Treiny passará por Gaya em pouco tempo agora. Alguns dizem que nossos sistemas falharão e vamos todos morrer porque “desobedecemos a ordem natural das coisas”. Bem, isso que acontece quando um cometa gigante só passa por Gaya de 400 em 400 anos. Somos sortudos por podermos vê-lo! E quem sabe, se tudo der certo, seremos a primeira geração de humanos a ver o cometa duas vezes!

Pelas minhas pesquisas, as infecções pararam. Ou pelo menos, é o que dizem na superfície. Quando eu procuro mais a fundo, o que encontro é que, as infecções aumentaram drasticamente, mas as memórias não foram apagadas. Ou seja, o vírus infecta, mas não ativa. Seja lá quem está por trás disso, é inteligente. Já estão sabendo que alguns poucos de nós sabem, e não estão gostando.

Hoje eu descobri uma limitação quanto à solução que Arthur o programador utilizou no meu pequeno caso com o vírus. O vírus reconhece que a simulação sou eu, porque a Rede a reconhece assim. Ou seja, eu sou ilegal. Se por algum acaso eu desligar na rua ou ser levada até o hospital, serei taxada como uma mera cópia, e minhas memórias apagadas. Meu corpo provavelmente será destruído, e apenas minhas memórias físicas ficarão. Isso é assustador.

Creio que ficar pensando em defeitos os traz para perto. Ontem minha bateria falhou. Na rua, eu pisquei e caí. Foi rápido, apenas alguns segundos desligada, porém, são alguns bons minutos para ligarmos completamente. As pessoas me olhavam de forma estranha. Mas no fim, levantei, bati a poeira, e segui para casa. Contatei Arthur o programador imediatamente, e ao chegar ele já estava lá. Não posso ir aos hospitais, então teremos que resolver isso em aqui.

Aparentemente, meu corpo está gastando mais bateria que o normal, por conta dos inúmeros programas extras que estou rodando no meu sistema. Preciso de uma bateria mais potente. Contudo, sabe quem são os únicos licenciados a trocar baterias? Isso mesmo. Os Médicos Robôs. Eu não posso ir ao hospital, e não tenho como trocar minha própria bateria… E apenas uma pessoa… talvez seja o momento de apresentar Arthur o programador ao Grupo.

Até agora tudo certo. Arthur o programador e o Grupo parecem se dar bem. Afinal, ele também é um pária. A bateria já está em mãos, e tudo está programado para amanhã. Então eu decidi andar na praia. A criança que eu ajudei a trazer ao mundo corre ao redor dos meus pés. Ela não consegue ver a diferença entre minha pele sintética e a sua pele orgânica. É lindo ver uma criança correndo. Elas são criaturas tão raras hoje em dia. Elas são magníficas.

Estou bem! A troca de bateria deu certo, e Arthur o programador ainda instalou um pequeno dispositivo que irá avisá-lo se eu por acaso deligar na rua. Não sei se fará diferença se ele não estiver por perto, mas tudo bem. Eu vou ficar aqui mais algum tempo. Quero ficar longe da cidade e dos problemas… quero ver esta criança correr na areia por mais alguns dias.

Existem ótimos programadores no Grupo. Ótimos hackers também. Eles disseram que vão pesquisar comigo a origem do vírus. Eu não tinha pensado em descobrir a origem do vírus, apenas em combatê-lo. Mas se soubermos a origem, podemos lutar contra a fonte, e evitar que isso se torne um problema global! Se já não o for…

Alguns cientistas estão dizendo que o cometa Treiny baterá em Gaya. Eles dizem que a órbita de Gaya mudou levemente, e isso influenciará na rota do cometa. Querem usar as armas nos satélites para destruir o cometa, para que não haja risco dele bater em nós. O Grande Governo está avaliando os resultados (que uma jovem do Grupo me mostrou). Mas… apesar de entender sobre o corpo humano, e entender mais que a maioria da população sobre o nosso corpo inorgânico, mas não entendo nada de física, e muito menos física no espaço. Mas que ambas as rotas parecem diferentes… elas parecem.

Aparentemente as notícias se espalharam. As pessoas estão começando a ficar nervosas. Há notícias sobre brigas e várias pessoas parando nos hospitais. Bem, eu acho isso tudo bastante conveniente. Assim os Médicos Robôs podem ativar os vírus…

Eu mandei uma reclamação ao Grande Governo. “Por que nada está sendo feito a respeito do vírus? As pessoas estão perdendo as memórias da Nuvem e vocês não fazem nada! Precisam se responsabilizar, afinal, vocês nos obrigaram a trocar de corpo.” Esperemos uma resposta.

“Querida Clara Shonenbert, nós estamos lidando com a situação da forma mais discreta possível. No momento, a rota do cometa Treiny é nossa prioridade. Contudo, não recebemos nenhum relatório dos Médicos sobre perda de memória, e pouquíssimas pessoas relataram problemas com a Nuvem, e sem reclamações e relatórios sobre o problema não há muito que possamos fazer.

Por favor, mantenha-se segura e reporte qualquer dificuldade.”

Bem, creio que não chegaremos em lugar nenhum dependendo do Governo.

Decidi que devemos lutar por nós mesmos! Chamei Arthur o programador e mais algumas pessoas do Grupo. Vamos pesquisar e lutar contra o vírus. Vamos defender a humanidade! Eu sei, soa infantil, mas… alguém precisa lidar com isso. Só precisamos de um nome…

Eu imagino quantas pessoas estão infectadas. Eu imagino se alguém do Grande Governo ainda não está infectado…

Houve uma descoberta sobre o vírus. Algo que vai mudar a maneira como vemos as coisas… Faz apenas 5 anos desde a Troca de Corpos. Nós nunca fomos formalmente autorizados a modificar ou mesmo estudar os corpos. Apenas os especialistas que montaram a Rede, a Nuvem, os corpos… apenas eles sabem realmente mexer em nós, Humanos Inorgânicos. O Grande Governo nunca nos explicou o porque da troca ser obrigatória, mas todos assumimos que era para o bem de Gaya. Nesses dois anos, o planeta realmente… se curou, sem a exploração constante. Porém… o evento do vírus deixou uma parte de nós ansiosa. O Governo não fez nada. Os Médicos Robôs não relataram a falha, na verdade eles nem “notaram”. Quando fomos aos hospitais, eu vi Médicos Robôs infectando as pessoas! Enfim, descobrimos que o vírus não tem uma assinatura humana, muito menos de um humano Artificial, como Arthur. A assinatura é completamente artificial. Quando humanos criam algo, eles deixam uma parte de si. É possível, não importa quão bom você seja, rastrear um programa para sua fonte. Quando descobrimos a fonte do vírus… não tinha uma fonte única. A fonte era a própria Rede. A fonte, era um conjunto. Isso não é humano. Eu não quero acreditar que isso seja real.

Pedi que confirmassem a informação. Não quis acreditar. Mas é verdade. Eu confio no meu grupo. O vírus realmente vem duma fonte não-humana. Vem de uma fonte conjunta. Não é particular. Apenas o Grande Governo tem acesso a uma rede assim. O Grande Governo e todos os ministérios. Os Robôs têm acesso a uma rede conjunta. Os Médicos Robôs… que eu vi… infectando uma jovem. Precisamos descobrir o motivo. Talvez, se descobrirmos o motivo, conseguiremos consertar! Às vezes é uma falha no sistema. Se for… eles me chamam de “idealizadora”, mas eu acho que pode ser possível! Quem sabe… até as memórias as pessoas estão lá, em algum lugar…

Eu ainda não consigo acreditar… os Médicos Robôs, aqueles que deveriam nos ajudar! É quase impossível invadir a Rede deles… por ser uma Rede conjunta… daria pra acessar alguns arquivos, mas… o ideal, seria pegarmos um deles…

Nós concordamos que pegar um MR seria o ideal.

Conseguimos! No fim, nem precisamos fazer uma distração. Uma pessoa histérica entrou no hospital e conseguímos paralisar um MR. O desligamos ali mesmo (é tão mais fácil quando podemos apertar um botão! E quando sabemos onde o botão é…) e o enfiamos no trailer. Fazia décadas que eu não fazia algo tão assustador e emocionante! Agora é descobrir como invadir essa coisa.

Finalmente. Foram… alguns meses, mas conseguimos. O mais chato foi desativar o GPS e qualquer outro programa de auto sabotagem. Depois foi “simples”. Bem, como eles disseram, eu sou a pessoas das ideias. É incrível vê-los trabalhando como um todo. No começo havia bastante preconceito contra pessoas como Arthur o programador, mas é maravilhoso ver humanos orgânicos e um humano artificial trabalhando juntos, como iguais.

Bem… aparentemente, a programação dos MR é bem simples. Arrumar os danos, mandar relatórios diários (isso foi um problema um pouco mais difícil de contornar, mas temos pessoas criativas no Grupo),  e manter os seres humanos felizes. Se houver algum dano no sistema, eles têm permissão para criarem programas e distribuírem. O que nós achamos que pode ter desencadeado o vírus é exatamente essa segunda parte. Nós, humanos, temos memórias que nos deixam tristes, mas elas fazem parte de nós, tanto quanto as felizes… minha hipótese é que eles criaram o programa para fazer as pessoas felizes. Mas… não deu muito certo.

Não sabemos como reagir a isso. Não podemos contar para o Governo, porque cometemos um crime grave. Não podemos sair por ai dizendo às pessoas para não irem aos hospitais ou não acessarem a Nuvem. Estamos distribuindo as memórias leves com o código antídoto, mas isso não é nem de longe suficiente. Não sabemos o que fazer. Não sei se podemos lutar contra o mundo todo sozinhos… mesmos se fizermos um grupo sério para lutar contra isso… não sei se podemos vencer.

Decidimos montar um grupo sério para lutar contra o vírus. Eu escolhi o nome: Linha de Defesa da Humanidade. Sim, eu sei, o nome é meio apelativo e infantil, mas… é verdade. Vamos entrar em contato com outros grupos e lutar por nossas memórias! Não sei se algum dia encontraremos as memórias perdidas, mas, pelo menos, podemos parar essa bagunça!

Bem… espero que nossos nomes se tornem parte da história de uma forma positiva algum dia. Cometemos tantos crimes até agora… o Grupo até mudou de nome (colocaram algo como “Ganen” por que apesar de lembrar “orgânicos”, ela soa diferente se você não está procurando por isso). No fim isso tudo está se tornando perigoso. Não sei se os MR vão nos perceber e lutar contra nós aberta e ativamente, ou se seremos apenas ignorados. Ambas as situações me assustam…

O cometa Treiny está chegando cada vez mais perto de Gaya. Acho que no final do ano já poderemos vê-lo a olho nu. Apenas alguns meses… agora todo aquele tumulto sobre o cometa ter mudado de rota está se intensificando. E por causa disso mais pessoas estão indo aos hospitais para colocarem upgrades visuais e coisas do tipo. Todos querem ver o que está prestes a acontecer. Eu não acho que o cometa vá realmente bater em Gaya, porém… os pesquisadores dizem que os dados são conclusivos.

Temos passado os dias estudando o MR capturado. Procuramos por algo que nos diga como reverter o problema do vírus. O maior problema está na programação. E isso não temos como mudar. Se uma mudança fosse aceita pelo Sistema dos MR, seríamos imediatamente descobertos e desligados. Precisamos descobrir uma forma alternativa. Talvez… na verdade é bem possível que o Grande Governo tenha algo a ver com isso, mas tenha saído de controle.

Eu tenho um corpo extra. Um que mantenho escondido a todo custo. A forma como consegui esse corpo… bem, foi excêntrico. Foi logo após a troca de corpos. Um homem na rua, andava com mais dois corpos. Os três trajavam a mesma roupa, e andavam da mesma forma. Os três pararam para me cumprimentar, e as vozes e trejeitos eram os mesmos. Então eles começaram a falar comigo, e aos poucos fui percebendo pequenas diferenças entre cada um deles. Perguntei se eram irmãos, e que tipo de brincadeira era aquela. “Sim, eu já tive irmãos. Irmãos artificiais. Mas quando eu nasci meus pais os desligaram. Afinal, quem precisa de crianças falsas quando se tem a mim?” Todos os três eram ele. De alguma forma, ele conseguira dois corpos extras e havia copiado suas memórias para cada um deles. Não era por fazer um backup, mas pela simples beleza de ver a si mesmo. Eu lembro de ter feito uma expressão estranha, ainda não acostumada muito bem com o corpo novo, e ele riu. “Oras, somos os criadores. Os originais. Somos humanos, e isso é maravilhoso. Por que não ter alguém engrandecer nossas ações nos acompanhando?” O que ele fez é muito ilegal. Copiar as próprias memórias e fazer “clones”, simulacros. O que é uma pessoa, senão suas experiências? Suas memórias? Fazer uma cópia de si mesmo… pelo simples prazer de sua própria companhia… de qualquer maneira, fiz uma amizade naquele dia, e consegui um contato muito importante.

Por enquanto nada novo no MR. Os dias têm passado devagar. Mas eu comecei uma pesquisa a parte. Não consigo ficar parada por muito tempo. Decidi pesquisar sobre o Grande Governo. Não descobri muita coisa ainda, mas, como eu já disse, com os contatos certos, conseguímos qualquer coisa. Parece que no começo, a ideia era vender os corpos inorgânicos a preços absurdos, e mandar pessoas universo à fora procurando por novos lugares para morar. Mas algo aconteceu, que mudou a cabeça deles rapidamente. Eles não foram os primeiros a trocarem de corpos. Os primeiros foram alguns pobres infelizes que não sobreviveram para contar a história. Mas como os políticos estavam com pressa, tudo foi feito da forma menos humana possível. Eu imagino o que o Governo descobriu lá fora. Bem, não tenho como saber.

Hoje Arthur o programador precisou de alguma manutenções mais sérias. Precisamos ir a um Hospital. No fim deu tudo certo, mas a maioria das pessoas ali… estavam estranhas. Os Médicos Robôs estavam infectando as pessoas abertamente, diziam que era um programa para deixá-las mais felizes, e as pessoas apenas aceitavam! Elas agiam todas iguais, cheias de sorrisos. Mesmo quando havia coisas obviamente erradas. Também no caminho de volta… mais e mais pessoas pareciam estranhas. Acho que… quanto mais tempo nós lutamos nas sombras, mais pessoas são infectadas e perdem as memórias.

Não vamos mais lutar nas sombras. Há uma cidade mais a leste. Uma cidade subterrânea onde muitos dos que sabem dos vírus estão buscando abrigo. A cidade é responsável por distribuir energia e sinais caso algum desastre aconteça e os sinais dos satélites não consigam chegar até Gaya. Há muitos humanos, orgânicos e inorgânicos que tomaram refúgio ali. Se conseguirmos levar o código antídoto até lá, podemos distribuí-lo com mais facilidade e para uma região muito maior.

Eu precisei estudar mais sobre nossos novos corpos. Não podemos mais ir aos Hospitais, da última vez os MR já nos olharam estranho… não quero correr nenhum risco. Parece que eles sabem que “está feliz e quem não está”. E.. bem, Arthur o programador chama atenção. Não podemos mais correr o risco. Então por enquanto, eu serei a responsável por aprender e fazer os reparos necessários. Isso é de longe não ideal, mas não temos o que fazer. No momento, sou a mais indicada. Apenas espero não ter mais problemas com a bateria.

O cometa Treiny está cada vez mais perto. Mais perto do que deveria estar… agora eu estou começando a ficar com medo. As pessoas do Grupo estão com medo também. Eu espero que dê tudo certo… li novamente as pesquisas sobre o cometa… e realmente, os resultados foram verificados várias vezes.

Há dias que eu não faço nada, apenas sento na areia e deixo a água bater em meus pés. Eu e a pequena criança. Hoje era pra ser um desses dias, mas eu vejo o cometa chegando mais perto. Eu sinto medo. Trouxe um livro para ler. As letras passam por meus olhos, mas o brilho constante no céu me assusta, e eu não consigo me concentrar. Eu imagino as consequências se o cometa cair em Gaya. Talvez a atmosfera vá ficar escura por causa da poeira levantada pelo impacto. Precisaremos de alguma fonte de energia. Talvez dê para usar o trailer, pois ele também usa energia eólica. Mesmo se não houver vento, podemos girar as manivelas manualmente. Mas somos muitos… provavelmente Shane teria que desligar seus clones, apesar deles serem bastante úteis (mesmo deixando todo mundo desconfortável). O ideal seria chegar na cidade subterrânea antes que qualquer coisa assim acontecesse.

Foi horrível. Essa é a primeira memória que tenho tempo de salvar. O cometa Treiny realmente atingiu Gaya. Eu estava do lado de fora quando ele se dividiu em várias partes! A princípio foi maravilhoso… o céu se encheu de linhas de luz! Contudo… elas estavam chegando muito perto. Quando acessei a Rede, havia alertas de segurança em todos os lugares. Agarrei a criança e corremos para dentro. Seguimos para o bunker, mas a onde de choque nos pegou. Fui lançada para longe, com a criança nos braços. Foi apenas por muita sorte que eu não a esmaguei contra uma parede. Minha pele ficou em frangalhos nas costas, onde pedras, areias e infinitas outras coisas me acertaram com o vento. Por fim, depois do que pareceram horas, eu finalmente alcancei a porta e descemos para o bunker. Não havia muitos ali… Arthur o programador estava lá, com Shane e seus simulacros, e alguns outros inorgânicos, e acho que dois terços do Grupo. Muitos deles estavam machucados e abalados. Quando olhei tudo aquilo… não vi como eles poderiam viver. Não houve nenhum preparo, não havia comida estocada, não havia lugar para todos dormirem, não havia cadeiras! Mal havia luz! De toda a minha vida, aqueles dias foram os piores. Eu tive que desligar os sensores de dor, por causa da pele dilacerada das costas, mas mesmo assim… todo o resto continuava. Em alguns dias, as nossas baterias começaram a avisar sobre carregamento. Então não tivemos outra escolha senão sair. O lado de fora… era caótico. Apesar de todos os sistemas falarem que era dia, o céu uma tempestade negra. Não havia luz. Então buscamos o local subterrâneo onde o trailer havia sido estacionado. Por algum milagre ele ainda estava inteiro. Conseguimos carregar as baterias, mas soubemos de imediato que isso não duraria por muito tempo. Teríamos que gastar boa parte da bateria para carregar o trailer. Ou… poderíamos tentar ir para a cidade subterrânea. No momento estamos discutindo a possibilidade de irmos todos para lá. Nós, inorgânicos, sem dúvida conseguimos chegar, principalmente com o trailer. Mas os orgânicos… não há como.

Recebemos uma mensagem da cidade subterrânea: no caos da queda de Treiny, ela foi tomada por humanos orgânicos e qualquer um que não tenha conexão com algum orgânico está proibido de entrar. Aparentemente eles soltaram um Pulso Eletromagnético, e tudo que não estava desligado foi destruído. Acho que só não foi tão ruim pois todos os “inorgânicos” ali eram realmente robôs, então não houve nenhuma morte… mas não deixa de ser um ato terrorista. Eu imagino se ainda poderemos fazer nosso plano funcionar.

Tenho guardado menos memórias. Está difícil conseguir energia, por causa da grossa camada de poeira que envolveu Gaya. Não sabemos por quanto tempo ficará assim. A manutenção de todos está comprometida, tanto inorgânicos quanto orgânicos, então não posso ficar gastando tempo nem bateria com isso. Mas fizemos um plano. Um de nós irá até a cidade subterrânea entregar as memórias leves. Mas é preciso que seja um humano inorgânico, pois… querendo ou não, sobrevivemos melhor. Este deverá levar uma bateria externa, e pelas nossas contas deve ser suficiente. Se tivermos algo que prove que estamos com o Grupo Ganen, o pessoal da cidade nos deixará entrar.

Pelas previsões, essa camada de poeira continuará por muito tempo. Então o Grande Governo está distribuindo algumas baterias extras e um dispositivo para que nossos corpos consigam adquirir energia eólica. Está tudo um caos tão grande… eu espero poder ir embora logo. Uma vez que distribuirmos as memórias leves com o código antídoto teremos um problema a menos para resolver.

O clima mundial está mudando. A energia gerada pela queda de Treiny se dissipou de forma amedrontadora, e há desastres acontecendo por toda a costa. A praia maravilhosa onde estávamos agora não existe mais. Muitas cidades foram destruídas por furacões e tsunamis. Tivemos muita sorte de conseguir sair a tempo. Eu espero isso acabe logo, senão não teremos como chegar na cidade subterrânea.

São apenas quatro dias de viagem. Pode pra ser feito com uma bateria cheia e uma reserva. Ainda mais com as pequenas turbinas eólicas. Dizem que há muitas tempestades de areia ocorrendo, mas não há problema para nós, inorgânicos: nós apenas nos sentamos e deixamos a tempestade passar. No máximo, nossa pele irá se desfazer, mas apenas tolos andam por aí sem enxertos de pele extra.

Durante a mudança apressada acabei perdendo algumas memórias. Espero que elas não sejam importantes.

Eu não sei o que dizer. As provisões estão acabando e cada vez mais as pessoas começam a ficar irritadas. O ambiente em geral está ruim. Eu quero ajudar o quanto posso, mas está cada vez mais difícil. Eu penso em me voluntariar para ir à cidade subterrânea o quanto antes. As pessoas do Grupo ainda gostam de mim, então acredito que eu seria a melhor escolha… afinal, eu precisaria de algo que provasse minha lealdade aos humanos orgânicos para que me deixassem entrar. O ideal seria não ir sozinha, mas… não posso pedir que mais ninguém venha comigo.

Eu estou com medo. O Grupo e os humanos inorgânicos que estão por aqui não estão se dando bem. Um grupo culpa o outro por tudo o que está acontecendo, e eu já não consigo mais explicar que ninguém realmente tem culpa. E estou preocupada com Arthur o programador. As pessoas não tem reagido muito bem a ele. Ao fato dele ser… diferente. É muito difícil diferenciar um humano inorgânico de um artificial, mas é possível. E eu temo que algumas pessoas já descobriram.

Acabamos por nos separar. Eu conversei com os pais da criança antes de ir. Eles me deram uma carta e uma foto, para provar aos humanos orgânicos da cidade subterrânea que eu não sou uma Máquina. Alguns humanos orgânicos vieram conosco, mas não sei por quanto tempo… eles estão ansiosos para ajudar a lutar contra o vírus. Pelo que eu vi, depois da queda do cometa Treiny, muitas coisas mudaram. Grande parte dos humanos inorgânicos e Máquinas estão perdendo a bateria e se desligando. Isso é… horrível, mas talvez nos dê uma chance de lutar contra o vírus e salvar aqueles que ainda não foram contaminados. Eu imagino se algum dia encontraremos as memórias daqueles que se foram…

Não há mais tempo. Eu vou para a cidade subterrânea. Eu preciso encontrar uma solução para isso! Hoje um de nós caiu para o vírus. Ele está mais próximo e mais inteligente. Nós o subestimamos. Tive que fazer Arthur o programador ficar. Ele é o melhor de nós para combater o vírus e fazer back-ups das pessoas. Eles não querem que eu vá, mas também concordam que… se alguém tem uma chance de ser recebida na cidade… esse alguém sou eu.

É isso. Lá vou eu, para minha próxima aventura. Talvez a última…

Eu deveria ter trazido alguém. As tempestades de areia são muito repentinas, e minha pele já está toda destruída…

Bateria extra. Carregar. Original.

Ligar. GPS. Última