
O Culto
Ela corria desesperadamente. Precisava se esconder. Não poderia ser pega. Não. Tudo menos isso.
A caça às bruxas havia começado. Literalmente.
Um culto secreto era, com certeza absoluta, um problema. Numa sociedade moderna e atual, qualquer coisa que fizesse as pessoas se revoltarem era desprezível e deveria ser eliminado. Acreditava-se que o culto havia começado há anos, apesar de só ter sido descoberto atualmente. Ele estava muito bem escondido em salas de estar. Em reuniões da faculdade. Em trabalhos de campo. Em grupos de cuidado à natureza. Ninguém sabia quem estava no meio. No dia em foram descobertos, estavam todos de máscaras e saíram correndo rápido demais para que os policiais os alcançassem. Eles estavam no meio do mato, e conheciam a região. Os policiais não. Mas um deles fora baleado, com certeza! Eles ouviram o grito de dor ecoar por todas as árvores. A Lua ficou um pouco mais escura daquele dia em diante.
A mídia ficou sabendo por um informante.
A cidade entrou em polvorosa.
Alguns sites anônimos começaram a incitar a população na caça aos seguidores do Culto.
Com o tempo, várias pessoas começaram a morrer. Algumas eram atropeladas. Outras morriam num incêndio acidental. Outras simplesmente sumiam. Algumas eram atacadas por grupos mascarados. Nenhuma das mortes ou ataques foram devidamente investigados.
A maioria dos Seguidores tinha marcas no corpo, como olheiras profundas, cicatrizes escuras, tatuagens estranhas pelo corpo todo. Quando perceberam as semelhanças, foi muito fácil caçá-los. Pelo mundo todo, Seguidores começaram a morrer, e não havia quem fosse contra. A esse ponto, não havia quem pudesse ser contra. Não se quisesse viver.
Ela correu por muito tempo, até despistar seus caçadores. Mas já era tarde demais. Ela sentia cada morte, e sabia que não tinha como ajudar. A Mestre era muito jovem. Sua força lhe permitiu fugir, mas seus poderes ainda eram muito fracos para proteger algo mais que somente ela. Os Anciões já haviam dado as ordens: esconder-se. Esconder as marcas. Esconder quem pudesse, mas não morrer por ninguém. Os Anciões sabiam que estavam fadados à morte. Eles eram velhos e precisam usar suas últimas forças para manter o equilíbrio. Apenas ela, que tomou forma por si mesma, poderia ajudar agora.
Mas a Mestre correu. Ela não tinha mais forças para esconder suas marcas, profundas e escuras por todo o seu corpo. As Marcas sugavam a energia da Terra e a devolvia. As marcas tinham que ficar, ou ela morreria. No fundo, ela sabia que morreria de qualquer forma. Era muito tarde. Ela conseguiu salvar um companheiro, seu amigo mais próximo. Apesar dum ferimento terrível, ela o salvou. Ele, que ainda não tinha marcas, agora ganhara uma. Mas e o poder para fazê-la sumir? Ele não tinha, então estava fadado a morrer com elas. Um brilho escuro pulsava pelas marcas. A energia.
Naquele dia a Mestre sentiu a última morte.
Naquele dia a Mestre soube que não havia uma chance de retorno.
A Terra estava condenada.
Os Anciões já haviam há muito morrido tentando salvar os últimos Seguidores, não havia com quem ela pudesse conversar e a esse ponto ela não poderia pedir ajuda para mais ninguém. Agora, ela tinha apenas duas opções: fugir daquele planeta condenado ou morrer com ele.
Seu coração muito doía com a escolha. Apesar de odiar os humanos, amava o equilíbrio que a Terra lhe oferecia e como a energia fluía bem. Um planeta tão velho não deveria morrer assim. Não. Precisava haver outra saída, outra opção… Eu não posso ir embora e largar tudo isso! Humanos malditos! Num surto de raiva, a Mestre socou a parede da caverna onde se escondia, trazendo abaixo toda a montanha.
O som de armas de fogo estava cada vez mais perto e ela já conseguia ouvir vozes. Ela não tinha magia suficiente para esconder-se, como esperava destruir 7 bilhões de pessoas e ainda manter o equilíbrio da Terra? Se eles não tivessem matado TODO MUNDO!!
Um clarão se fez no céu noturno. Clareon olhou para baixo e sentiu um calafrio. Algo estava errado.
Há muito tempo Clareon estudava. Ele estudava as energias dos planetas. Ele estudava o cosmos. Ele estudava cada partícula que gerava a energia necessária para manter a vida: uma tarefe há muito lhe designada. Ele havia aprendido sobre como a vida surgiu e sumiu milhares de vezes. Ele sabia que, para haver vida, era preciso equilíbrio. Mas a entropia não permitia tal coisa, então era preciso que o equilíbrio fosse forçado. No começo, ele sabia, fora fácil. Havia pouca vida, havia poucos planetas. Um Ancião mantinha o equilíbrio. Mas eles foram gananciosos. Eles, que nada mais eram que energia, forçaram o a mão do acaso e criaram mais e mais vida. Por algum tempo, parecia uma competição: Anciões criavam vida, e com a energia perdida, eles criavam Mestres. Com o passar do tempo, havia mais planetas que Anciões, e estes se retiraram do plano, mantendo seus Mestres nos planetas, para manter o equilíbrio e a vida. Contudo… a vida começava a criar forma e consciência, e os Mestres precisavam se tornar parecidos.
Com o aumento da vida, Mestres começaram a recrutar as criaturas dos planetas para trabalharem em conjunto. Os Seguidores.E muito tempo de passou. O número de planetas aumentava a cada momento, assim como o número de Mestres e Seguidores. Alguns planetas os veneravam. Alguns… nem tanto. E agora, surgia um brilho no céu. No espaço. Clareon observou, preocupado. algo estava errado. Como eles chamam a si mesmos? Terra? Clareon focou sua mente no pequeno planeta, procurando por Mestres e Seguidores. Havia um Ancião na Terra, pois era um dos planetas problemáticos… Onde estão eles? Clareaon ainda não tinha um corpo. Ele nada mais era que energia solta pelo espaço, absorvendo conhecimento. Era difícil focar-se por muito tempo, e ele sentia sua energia dissipando, o chamado do espaço. Ele tentou mais uma vez se concentrar. Ele deveria sentir o Ancião, os Mestres, até mesmo a pequena fagulha dos Seguidores, mas ele não sentia nada. Até que algo invadiu seu espaço. Uma energia que não era ele.
Seramorris sabia que os humanos estavam cada vez mais perto. Eles não teriam como não ver ou ouvir a montanha se desfazendo. Ela sabia que tinha suas ordens, que não seria o ideal matar os humanos, a vida. Então ela poderia lutar de volta. Todos os seus Seguidores… ela amava cada um deles de uma forma que um humano nunca compreenderia. As marcas em seu corpo brilhavam fracas, a energia saindo e voltando ao planeta. Havia uma coisa que ela poderia fazer. Era impossível aos Seguidores, pois eles eram humanos. Mas ela não era. Apenas sua forma era como a deles. Seu ser nada mais era que energia. Ela ouvia os passos e gritos das pessoas atrás dela. Ela não tinha tempo para pensar. Havia apenas uma opção para continuar viva. Ela respirou pela última vez naquele corpo de carne, e se deixou expandir. Ela sentiu sua energia, contida por décadas naquele corpo explodir enquanto os primeiros humanos chegavam à montanha destruída. Uma luz dolorosamente clara surgiu da moça, e quando os humanos conseguiram finalmente abrir os olhos, ela não estava mais ali. Confusos, eles começaram a procurar pela “bruxa”, mas esta já estava a quilômetros de distância, céu acima.
Seramorris esbarrou com algo, até onde seres incorpóreos podem esbarra-se entre si. Houve um momento de confusão, enquanto cada ser se concentrava em si mesmo. Houve reconhecimento entre as duas energias, e Clareon perguntou o que acontecia no pequeno planeta.
-Eles não aceitam, eles não ouvem, – Seramorris transmitiu a ideia – é impossível racionalizar com aquelas criaturas. Eles não nos deixara explicar e mataram todos os Seguidores. Até mesmo os outros Mestres se foram, e eu não sei como isso é possível. Eu também não posso sentir o Ancião. Estou com medo das possibilidades.
-Sera… sim. Eu também não sinto o Ancião. Mas você deve voltar! O planeta não tem como existir sem alguém para manter o equilíbrio!
Seramorris sentiu o planeta. Ela sabia que, há muito tempo, um Ancião se sacrificara para manter a vida num planeta. Mas os resultados seriam os mesmos: quando o poder se esvaísse, a entropia tomaria conta, e a vida seria extinta. Mas não para sempre. Nunca para sempre. Com o tempo, mais energia era gerada, e eles poderiam mais uma vez forçar o acaso e criar vida. Mestres. Seguidores.
-Clareon, você acha que o Ancião se sacrificou?
-Não seria a primeira vez. Alguns tem muito apego pelo que criam…
-Não podemos perder mais Anciões! Apenas eles podem criar vida e Mestres! – Seramorris estava abalada, sua energia aos poucos se perdendo para a entropia. Clareon sentia a energia se transformando. Ela precisava se concentrar. Ele não gostava se pensar daquela maneira, toda a vida era preciosa, mas ele entendia que Anciões eram mais importantes. Sem eles, como havia vida?
-Sera, concentre-se. Você está dissipando. Está… fraca.
Ela se concentrou. Sim, estava fraca. A maior parte dela fora dissipada no pequeno planeta, criando Seguidores e mantendo o equilíbrio. Normalmente, quando um Seguidor morria, seu Mestre estava lá para tomar a energia de volta, mas isso não foi possível para Seramorris. Sua energia ficara presa no planeta, e ajudaria a desequilibrar a vida. Parte dela estava e fúria! Queria descer e levar a entropia ela mesma àquelas despresíveis criaturas. Ela se forçou a se concentrar. Não poderia perder-se aqui, não agora. Imagens passavam por sua consciência. Ela já vira um planeta ser destruído antes. No começo, todos viram. Ela sabia o que aconteceria.
O núcleo do planeta esquentaria demais. Sem nada para tomar a energia extra e reciclá-la, não havia nada a ser feito. Erupções aconteceriam por todo o planeta e a temperatura iria aumentar drasticamente. Todo aquele calor não conseguiria se dissipar, e não haveria luz por causa da poeira, detritos e fumaça das explosões vulcânicas. Toda a atividade provocaria tsunamis e terremotos, e o calor derreteria o gelo e aumentaria o nível do mar. Quanto mais Seramorris deixava tais imagens passarem por sua consciência, mais ela controlava sua energia. Ela podia sentir Clareon compartilhando de sua consciência. Ela sentia medo vindo dele. Talvez… apenas talvez, ela estivesse um pouco corrompida pela entropia. Ela sentia prazer imaginando o que aconteceria no planeta sem seu auxílio. Tentou pensar no futuro de planetas assim. Com o tempo, sem vida, era possível voltar os planetas ao equilíbrio. Com calma, sem forçar a mão do acaso, apenas apontá-la para o caminho desejado, era possível trazer vida a um planeta destruído.
-Seramorris – Clareon interrompeu seus pensamentos – se você não voltar lá, todos vão morrer. Você precisa buscar o restante da energia do Ancião e de seus Seguidores, ou a destruição do planeta virá antes que possamos fazer algo a respeito!
-Deixe que morram. – Clareon assustou-se com a resposta. O medo era claro em sua energia. – A morte também faz parte do equilíbrio.