
Sinos da Liberdade
A estrada estava coberta em névoa.
Durante boa parte do caminho, era impossível enxergar muito além dos próximos dois passos a serem dados. Mas ele prosseguiu.
Quando escapou, não estava em seu pleno juízo.
Deus, não estava em seu pleno juízo naquele momento.
Mal conseguia concentrar-se em manter o ritmo da caminhada, que era muito mais um tropeço contínuo e desesperado do que uma caminhada propriamente dita.
Não tinha certeza de que estavam atrás dele. Restava apenas esperar que não. Sua fuga não havia sido exatamente discreta, e talvez houvessem dois ou três corpos demarcando sua passagem nos corredores estreitos da prisão.
– Deus, me perdoe… – murmurou entre passos.
O lugar não deveria estar muito longe. Ele tinha fé de que o alcançaria logo.
Fé.
Aquilo era o que o havia feito suportar toda a tortura e o tempo de cárcere. Era o que havia lhe dado a força e a confiança para fazer o que deveria ser feito. Para conseguir escapar.
Ele rezara por todo o tempo durante o cárcere, durante as torturas. Rezara antes de dar os primeiros passos em direção à sua fuga e rezava agora, quanto tinha certeza que estava prestes a dar os últimos.
A silhueta de um prédio surgiu fantasmagoricamente em meio à neblina. A torre do sino despontava nas alturas como um farol. Um farol para a sua escuridão.
Estava quase lá.
A fé mais uma vez guiou seus passos. Carregou-o para mais perto do prédio, que se tornava mais nítido a cada novo passo dado.
Quando a igreja finalmente tomou forma diante de seus olhos, o alívio foi instantâneo. Foi quase como se pudesse sentir a leveza do terreno sagrado se apossar de seus sentidos. Havia atravessado uma barreira, e agora estava seguro dentro da santa proteção da igreja.
Temia não ter forças para adentrar a santa casa de Deus, com suas grandes portas sempre muito pesadas, temia que sua fé não fosse o suficiente para fazer com que seus braços afastassem as grandes portas, abrindo passagem.
Mas Deus foi piedoso.
As portas estavam abertas.
A igreja estava deserta. Não haviam fiéis ocupando os longos bancos destinados à reza. Não havia um padre no confessionário, nem no palanque à frente da cruz. Os recipientes de água benta estavam secos.
Poderia parecer uma cena de abandono, mas não era. A casa de Deus nunca está abandonada. Pode encontrar-se temporariamente vazia ou maltratada, mas abandonada, jamais. Pois a fé sempre precisa de uma casa para retornar.
E ele era um homem de fé.
Não soube exatamente como chegou à torre do sino, ou quanto tempo levou. Pareciam meros segundos entre o instante em que havia se maravilhado com a imensa cruz e o instante em que se encontrava encarando o pesado sino de metal.
O sino repousava metros acima de sua cabeça. Imperturbável. Solene.
Pareceria quase um insulto, um sacrilégio, perturbar a paz daquele lugar. Mas ao mesmo tempo, parecia igualmente certo trazer alguma harmonia para o silêncio que imperava na casa de Deus.
“Tocar os sinos para tocar a alma.” – Pensou consigo.
Lembrava-se de escutar aqueles sinos tocando ao longe, durante seus primeiros anos de cárcere. Costumava confortar-se com o som dos sinos. Um dia, os sinos deixaram de tocar, e ele nunca soube o por quê.
Vez por outra, podia jurar que os havia escutado, claro como o dia. Eram dias e horários peculiares para se escutar o soar dos sinos, e a princípio aquilo lhe parecera estranho. Agora, sozinho na casa de Deus, com as mãos segurando firmemente a grossa corda que badalaria o pêndulo da grande estrutura de metal, ele entendia.
Talvez aquelas badaladas fossem obra de pessoas como ele. De homens perdidos e de almas atormentadas como a sua. Homens que encontraram seu refúgio no terreno sagrado, mesmo que ele estivesse temporariamente vazio.
Respirou fundo antes de puxar a corda, e sentiu grossas lágrimas escorrendo por sua face. Lágrimas de alegria, alívio e, principalmente, liberdade.
Puxou a corda.
O sino badalou.
Puxou a corda de novo.
E de novo.
E de novo.
E a cada nova badalada, sentia menos tormento e mais alívio.
Havia acabado.
Estava livre.
Aquele era o fim.
E o fim soava agradável e libertador como o badalar dos sinos divinos.
Na prisão, um corpo era arrastado para o necrotério, pronto para ser colocado junto com os outros três que já repousavam pacientemente no aposento.
– É ele? – Indagou o responsável pelos mortos.
– Sim. – Respondeu um dos guardas que carregava o recém-chegado.
– Onde estava?
– Exatamente onde caiu depois que um dos tiros o acertou no coração. – Disse o guarda, depositando o corpo sobre um leito imundo.
O médico legista analisou a expressão de seu novo inquilino.
– Ele parece estranhamente feliz. – Constatou.
– Feliz como se ouvisse os sinos de Deus. – Concordou o outro guarda, retirando-se da sala.
A fé é cada vez mais importante hoje em dia. Principalmente para os condenados.
Adorei, minha amiga querida!
Receber elogios de Ruy Galvão é sempre a melhor coisa <3